sábado, 3 de junho de 2017

Raoul Walsh: O precipício da vida


por Jorge Silva Melo

Há quem torça o nariz à literatura latina, língua invisível, língua sem deuses, literatura de géneros - oratória, epístolas, história, diálogos, biografias, tragédia política, poema didáctico, poesia de circunstância - que cedo se dissolveram nessa obra-prima, o Direito Romano, e dessa maneira culminaram na vida nossa, civil. E há quem, como eu, jure por Séneca e por Raoul Walsh.

Onde encontrar tal velocidade, tal desamparo narrativo, tão grande consciência do homem perdido na voragem do tempo, tão precisa economia dos meios, tal clareza na definição dessas linhas de fuga que fazem o precipício da vida, tão grande modéstia na afirmação do que se tem a dizer e não de quem se é? Tão certa noção de que o estilo não é o enfeite mas a linha mais recta. Vejam They Drive By Night e leiam Séneca - os homens correm, desamparados, mas continuam a correr nas estradas vazias de deuses.

Raoul Walsh bem pode ter ocupado o meu imaginário infantil com o Gregory Peck à proa e ao crepúsculo abraçando a Ann Blyth n'O Mundo nos Seus Braços (que vi no Europa), ou com a tonitruante saúde de Errol Flynn no Gentleman Jim (no Coliseu), bem me pode ter inchado o conhecimento ironicamente cinéfilo (e pré-pós-moderno?) com o Barba-Negra, O Pirata (Monumental, Quinzenas do Bom Cinema), um filme tão alegre como o mais truculento Rossini, bem me pode ter empolgado com as dúvidas de Jack Hawkins nesse filme raciniano que é Ester e o Rei (no Politeama).

Mas foi quando tive que filmar, adulto, os corpos adultos de homens e mulheres - tentando não impôr nem transcendência nem moral - que percebi que o amava mais do que as palavras o sabiam. Que todos os dias de rodagem ele me guia: porque ele é o cinema frente a frente, a vida dos homens sem Deus.

Walsh não filma por cima dos actores, não há moral nem pátria, não tenta criar um cancioneiro nacional, não procura a sentença, filma de frente e depressa. Não tem do mundo uma lição a tirar ou a dar, não tem conselhos nem heróis, filma curto e o ritmo é o seu íman. Filma a velocidade com que os homens avançam pela noite, desencontrados, incertos, aos gritos, lacónicos, perdidos, sós, fracos - conquistadores ou vencidos, mortalmente fracos.

E o que é ele, o James Cagney de Fúria Sanguinária naquela literal explosão que é o seu final? Vencedor? Vencido? Frágil? Forte? Como Coriolano, o traidor-herói-traído de Plutarco ou Shakespeare, explode à sombra de uma mãe pétrea. E foi com este filme, rápido como as balas, gritando aos nossos ouvidos, elíptico pela voracidade narrativa, que comecei a associar a enorme euforia de Walsh com a afirmatividade da literatura latina, seca, marmórea, veloz, seguindo os destinos dos homens a traços largos, sem demoras nem análises, que o gesto é estátua e o sol vai pôr-se.

Quem fôr a Roma ande pelo Panteon e pense em Walsh.

Também Coriolano é a mais veloz das tragédias de Shakespeare, a menos analítica, a mais imparável (um único e longuíssimo silêncio e o único escrito: silence). E é deste Shakespeare romano - ruidoso, atropelado como o barulho dos jeeps na Coreia ou o dos cavalos no longínquo Oeste - que Walsh guarda a forma: nenhuma moral, os factos apenas, a dura análise das contradições do viver e do levar à frente a sua missão: quem é o Aldo Ray de Os Nus e Os Mortos (visto no Eden)? E o Clark Gable do The Tall Men (no Lys, entre lágrimas)? Gente. Lavradores, soldados, pastores, gangsters: não são heróis mesmo quando medalhados, não são exemplo, são "por exemplo, este".

Walsh transforma as histórias que lhe chegam do departamento de argumentos e filma, não gente perdida à espera da redenção como os alcoólicos de Hawks, não gente sulcando no deserto os trilhos para uma pátria fértil como os silenciosos de Ford, não gente ferida recusando consolo como os muitos homens doridos de Ray, não gente dúbia inocente porque culpada como os falsos inocentes de Hitchcock: gente apenas, soldados, homens quase anónimos mesmo quando heróicos, tão iguais que são aos outros (o Tab Hunter de Antes do Furacão, visto num cinema esquecido do Quartier Latin). Mas, porque são soldados, o seu destino não é nem a lenda nem deus, apenas a brutal morte ao fim da estrada, corpos sexuados.

E aquilo que eu, adolescente, não percebia em Walsh é que ele - com código Hays e tudo - foi quem filmou o sexo adulto. Não o louro desejo adolescente, não o combate homossexual pela identidade, não o hino nupcial, não a tremura da vergonha: o sexo sem romance dos homens, tal como o das mulheres.

Os homens são pesados nos filmes de Walsh, não se fala aqui de graça nem perdão. Rudes, prosaicos, duram a vida que lhes coube e somem-se na terra que um dia pisaram com vigor e modéstia. Como na literatura latina.

E quando um dia destes passar A Carga da Brigada Azul, não no Jardim Cinema, onde o vi, mas agora no recato de uma cinemateca, espreitem Virgílio: não estarão longe do seu ouro, do que é a arte dos adultos, daqueles que, pudicos, se envergonham dos estertores da adolescência. Se Walsh é, para mim, o cinema corajosamente adulto (e Gloria Swanson sabia-o ao escolhê-lo para Chuva, a partir da escaldante novela de Maugham), é porque ele filmou sempre o imparável caminho até ao precipício: sem redenção. E esse caminho foi sempre, para ele, o combate sexual: vejam Band of Angels e os seus azuis tórridos, aveludados.

A sua arte sem romantismo, rápida (The Strawberry Blonde, visto na Cinemateca), o seu olhar apenas cru, dissolve-se assim no próprio cinema: cada filme seu é um epitáfio (The Big Trail). Às vezes, uma elegia (A Carga da Brigada Azul), à beira da velhice. Mas sempre por nós.

Público, Y, 18 de Maio de 2001

in Século Passado

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