quinta-feira, 31 de janeiro de 2013


"Não fora o canto final da Comédia de Dante que me imprimira a identidade, quando o li pela primeira vez, nesse dia, ainda na escola? Canto Trinta e Três do Paraíso, para mim a culminação, onde Dante diz:

"Observo as folhas dentro da fornalha sem fundo
Num volume envolvido pelo amor, o mesmo
Que o Universo mantém espalhado por todo o seu labirinto.
Substância e acidentes, nos seus modos, tornam-se
Como que fundidos uns nos outros, todos de tal forma
Que aquilo que eu digo é uma simples chama."

A soberba tradução de Lawrence Binyon; e depois os comentários de C. H. Grandgent a essa passagem:

"Deus é o livro do Universo."

A que um outro comentador, não me lembro qual, observou: "Trata-se de uma noção platónica." Platónica ou não, essa é a sequência de palavras que me enquadrou, que me fez o que sou: essa é a minha fonte, essa visão e esse relato, essa vista das coisas finais. Não me considero cristã, mas não posso esquecer essa visão, essa maravilha. Lembro-me da noite em que li esse canto final do Paraíso, em que o li de facto, pela primeira vez; tinha um dente infectado e doía-me horrivelmente, insuportavelmente, por isso fiquei de pé toda a noite, a beber uísque puro e a ler Dante, e às nove da manhã do dia seguinte fui directa ao dentista sem telefonar, sem uma marcação, apareci com as lagrimas a escorrerem-me pela cara abaixo, suplicando ao Dr. Davidson que fizesse qualquer coisa por mim... o que ele fez. Por isso, esse canto está profundamente gravado em mim; está associado a uma dor terrível e uma dor que durou horas, durante a noite, pelo que não havia ninguém com quem falar; e disso saí a aprofundar as coisas últimas à minha própria maneira, não uma maneira formal ou oficial, mas, de qualquer forma, uma maneira.

"Aquele que aprende, deve sofrer. E mesmo no nosso sono, a dor que não pode esquecer cai gota a gota no coração, e para nosso próprio desespero, contra a nossa vontade, chega-nos a sabedoria pela graça medonha de Deus."

Ou lá como é. Ésquilo? Não me lembro agora. Um daqueles três que escreveram tragédias.

O que significa que posso dizer com toda a verdade que, para mim, o momento de maior compreensão, em que finalmente conheci a realidade espiritual, chegou em ligação com uma irrigação de emergência dos canais da raiz e duas horas na cadeira do dentista. E doze horas a beber uísque, mau uísque, por sinal, e simplesmente ler Dante sem ouvir a aparelhagem ou comer - não havia forma de poder comer -, e sofrer, e tudo isso valeu a pena; nunca o esquecerei. Portanto, não sou diferente de Tim Archer. Também para mim, os livros são reais e estão vivos; as vozes de seres humanos saem deles e compelem a minha aceitação, da mesma forma que Deus compele a nossa aceitação do mundo, como dizia Tim. Quando se esteve em tão grande miséria, não se vai esquecer o que se fez, se viu e se pensou e leu nessa noite; eu nada fiz, nada vi, nada pensei; li e recordo-me; nessa noite não li Howard the Duck ou The Fabulous Furry Freak Brothers ou Snatch Comix; li a Comédia de Dante, do Inferno ao Purgatório, até que finalmente cheguei até aos três coloridos anéis de luz..."

Angel Archer, narradora de The Transmigration of Timothy Archer, de Philip K. Dick

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