terça-feira, 27 de novembro de 2012

sábado, 24 de novembro de 2012

domingo, 18 de novembro de 2012

WRITTEN ON THE WIND (1956)



por R. W. Fassbinder

Written on the Wind (1957) is the story of a super-rich family. Robert Stack is the son, who was never as good, in any way, as his friend, Rock Hudson. Robert Stack knows how to spend his money: he flies aeroplanes, drinks, lays girls; Rock Hudson is his constant companion. But they are not happy. There's no love in their lives. Then they meet Lauren Bacall. Naturally she is different from all other women. She's straightforward, works for her living, is practical, she's tender and understanding. And yet she chooses the bad guy, Robert, although the good guy, Rock, would suit her much better. Rock has to work for his living too, is practical, understanding and big-hearted, like her. She picks the one with whom things can't possibly work out in the long run. When Lauren Bacall meets Robert Stack's father for the first time she asks him to give Robert another chance. It's disgusting the way the kind lady kicks the good guy in the balls to set things up for the bad guy. Yes indeed, everything is bound to go wrong. Let's hope so. Dorothy Malone, the sister, is the only one who is in love with the right person, i.e. Rock Hudson, and she stands by her love which is ridiculous, of course. It has to be ridiculous when everyone else thinks their surrogate actions are the real thing, it is quite clear that everything she does, she does it because she can't have the real thing.

Lauren Bacall is a surrogate for Robert Stack because he must know he will never be able to love her, and vice versa. And the father has an oil derrick in his hand which looks like a surrogate cock. And when Dorothy Malone at the end, sole surviving member of the family, has this cock in her hand it is at least as wretched as the television set which Jane Wyman gets for Christmas. Which is a surrogate for the fuck her children begrudge her just as Dorothy Malone's oil empire is a surrogate for Rock Hudson. I hope she won't make it and will go mad like Marianne Koch in Interlude. For Douglas Sirk, madness is a sign of hope, I think.

Rock Hudson in Written on the Wind is all in all the most pig-headed bastard in the world. How can he possibly not feel something of the longing Dorothy Malone has for him? She offers herself, goes after guys who look vaguely like him so as to make him understand. And all he can say is 'I could never satisfy you'. God knows, he could. White Dorothy is dancing in her room, dancing the dance of a corpse - maybe that's the moment her madness begins -, her father dies. He dies because he is guilty. He has always fostered the belief in his real children that Rock Hudson was better than them, until in the end he really was. Because he could never do what he wanted himself and he had always thought Rock's father, who had never made any money and could go hunting whenever he wanted to go hunting, was better than he was. The children are just poor, dumb pigeons. Probably he understands his guilt and it kills him. In any case, the spectator understands it. His dead isn't terrible.

Because Robert doesn't love Lauren he wants a child by her. Or because Robert has had no chance to achieve anything, he wants at least to father a child. But his efforts reveal a fatal weakness. Robert starts drinking again. Now it becomes clear that Lauren Bacall is no use to her husband. Instead of drinking with him, understanding something of his pain, she becomes nobler and purer than ever, she makes us feel more and more sick and we can see more and more clearly how well she would get on with Rock Hudson, who also makes us feel sick and is also noble. People who are brought up to be useful, with their heads full of manipulated dreams, are always screwed up. If Lauren Bacall had lived with Robert Stack, instead of living next to him, through him, and for him then he might have believed that the child she is expecting is really his. He wouldn't have had to suffer. But, as it is, the child belongs more to Rock in actual fact, although he never slept with Lauren.

Dorothy does something bad, she sets her brother against Lauren and Rock. All the same, I love her as I rarely love anyone in the cinema, as a spectator I follow with Douglas Sirk the traces of human despair. In Written on the Wind the good, the 'normal', the 'beautiful' are always utterly revolting; the evil, the weak, the dissolute arouse one's compassion. Even for the manipulators of good.

And then again, the house in which it all takes place. Governed, so to speak, by one huge staircase. And mirros. And endless flowers. And gold. And coldness. A house such as one would build if one had a lot of money. A house with all the props that go with having real money, and in which one cannot feel at ease. It is like the Oktoberfest, where everything is colourful and in movement, and you feel as alone as everyone. Human emotions have to blossom in the strangest ways in the house Douglas Sirk had built for the Hadleys. Sirk's lighting is always as unnatural as possible. Shadows where there shouldn't be any make feelings plausible which one would rather have left unacknowledged. In the same way the camera angles in Written on the Wind are almost always tilted, mostly from below, so that the strange things in the story happen on the screen, not just in the spectator's head. Douglas Sirk's films liberate your head.

in Six Films by Douglas Sirk by Rainer Werner Fassbender
Translated by Thomas Elsaesser.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

HIROSHIMA NOTRE AMOUR


No número 71 dos Cahiers du Cinéma, alguns redactores organizaram uma primeira mesa redonda sobre a situação, então crítica, do cinema francês. Hoje, com a estreia de Hiroshima, mon Amour, parece-lhes um acontecimento suficientemente importante para justificar uma nova conversa.

Rohmer: Penso que todas as pessoas estarão de acordo se eu disser, para começar, que Hiroshima é um filme do qual se pode dizer tudo.

Godard: Comecemos por dizer que se trata de literatura.

Rohmer: E de uma literatura que é um pouco suspeita, na medida em que derivou da escola americana, que esteve em voga depois de 1945 em França.

Kast: As relações entre o cinema e a literatura são, pelo menos, obscuras e más. Tudo o que se pode dizer, creio eu, é que os literatos desprezam de uma forma confusa o cinema. E as pessoas do cinema, de forma confusa, sofrem de um sentimento de inferioridade. A singularidade de Hiroshima é que o encontro Marguerite Duras-Alain Resnais é uma excepção à regra que acabei de enunciar.

Godard: O que é impressionante, antes de tudo, no filme, é que não possui nenhuma referência cinematográfica. Pode-se dizer de Hiroshima que é Faulkner mais Stravinsky mas não se pode dizer que é um cineasta mais outro.

Rivette: O filme de Resnais talvez não tenha referências cinematográficas precisas mas creio que se podem encontrar referências indirectas e profundas, porque é um filme que faz pensar muito em Eisenstein, na medida em que se pode encontrar a aplicação, aliás muito original, de certas ideias de Eisenstein.

Godard: Quando dizia que não tinha referências cinematográficas, queria dizer que vendo Hiroshima tem-se a impressão de ver um filme imprevisível, em relação ao que já se espera do cinema. Por exemplo, quando vemos India, sabemos que vamos ser surpreendidos mas esperamos, mais ou menos, essa surpresa. Do mesmo modo, sei que serei surpreendido por Cordelier como fui por Elena. Enquanto que com Hiroshima, tive a impressão de ver algo que não esperava de forma alguma.

Um motivo central

Doniol-Valcroze: Será que, em relação a Resnais, não esperávamos já um pouco o que íamos ver? Por exemplo, tendo em conta Nuit et Brouillard e Toute la Mémoire du Monde.

Kast: É verdade. Por detrás da aparente diversidade dos assuntos, desde Guernica ao Chant du Styrène trata-se um motivo central. Habitualmente, consideram-se como contraditórios a inteligência e a sensibilidade, a paixão intelectual e a emoção. Resnais dá que fazer a estes amadores da lógica. Desta obra, que é um todo sem falha, se nos referirmos ao autor, não é a primeira vez que nos surpreende.

Rivette: Hiroshima explica mais as curtas metragens de Alain Resnais do que é explicado por elas. É vendo Hiroshima que se compreende exactamente o que Resnais queria dizer com Les Statues Meurent Aussi, Bibliothèque National ou mesmo Van Gogh, nos quais se definia já como um cineasta que reflecte. De modo que, efectivamente, Hiroshima, é a consequência das curtas metragens que se admiravam de forma um pouco cega. Contudo, existe sem dúvida uma parte de Hiroshima que admiramos às cegas e que será explicada pelos filmes seguintes de Resnais. Em todo o caso, penso que com Hiroshima pode-se, enfim, considerar as curtas metragens de Resnais como uma obra que forma um todo. Até agora, os filmes estavam dispersos, mesmo na nossa admiração. Era normal olhar para cada um como um caso particular. Tomando os três últimos, havia evidentemente semelhanças entre Nuit et Brouillard, Nationale e Styrène mas, justamente, tinha-se tendência em pensar que era, se não um truque que Resnais tinha encontrado, pelo menos um "estilo" com tudo o que isso podia comportar de profundo e exorbitante. Em Nationale, o que gostei mais foi do conteúdo, do tema. Achei a forma muito bela mas esta deu-me a sensação de vir, talvez, por acréscimo. Depois de ter visto Hiroshima, já não tenho essa sensação.

Godard: De resto, Hiroshima assemelha-se muito mais a Toute la Mémoire du Monde do que às outras curtas metragens de Resnais. Todavia, é quase o mesmo tema: o esquecimento e a recordação.

Doniol-Valcroze: No fundo, essas curtas metragens eram sobretudo partes de um grande filme que nunca veremos, do qual Hiroshima nos mostrou o que poderia ter sido.

Kast: Nunca ninguém teve a ideia de classificar Resnais de documentarista, no sentido pejorativo do termo. No entanto, em concessão aos aristotélicos, é preciso reconhecer que os seus filmes não eram de ficção.

Godard: Em todo o caso, eram filmes de ciência.

Kast: Foi Marguerite Duras que desempenhou o papel de catalizador entre o documentário e o romance, a ciência e a ficção. Há muito tempo que Resnais pensava no filme romanceado. Interessou-se por certos romance de Queneau como por "Mauvais Coups" de Roger Vailland.

Talvez a felicidade


Rohmer: E se falássemos um pouco de Toute la Mémoire du Monde? Para mim é um filme que permanece bastante obscuro. Hiroshima esclareceu-me certos aspectos mas não todos.

Rivette: É sem dúvida a mais misteriosa de todas as curtas metragens de Resnais. Quanto ao tema, muito moderno e muito angustiante, vai de encontro àquilo que dizia Renoir nas entrevistas, i.e., o grande drama da nossa civilização é que ela se está a tornar numa civilização de especialistas. Estamos cada vez mais fechados no nosso pequeno domínio e incapazes de sair de lá. Ninguém hoje é capaz de decifrar uma inscrição antiga e uma fórmula científica moderna. A cultura e o tesouro comum da humanidade tornaram-se presas dos especialistas. Creio que era essa a ideia de Resnais ao fazer Nationale. Ele desejava mostrar que a única tarefa necessária à humanidade, para reencontrar a unidade da cultura era, através do trabalho de cada um, tentar juntar os fragmentos espalhados da cultura universal em vias de se perder. E é por isso, penso eu, que Toute la Mémoire du Monde termina com planos cada vez mais elevados da sala central, onde se vê cada leitor, cada investigador, no seu canto, debruçado sobre o seu manuscrito mas uns ao lado dos outros, todos a tentarem juntar os bocados dispersos do mosaico, para reencontrar o segredo perdido da humanidade, segredo esse que se chama talvez a felicidade.

Domarchi: Afinal é um assunto que não está afastado do de Hiroshima. Falou-se sobre a forma mas Resnais também se aproxima de Eisenstein em relação ao fundo, pois os dois tentam unificar contrários. Dito de outra forma, a arte deles é dialéctica.

Rivette: A grande obsessão de Resnais, se podemos empregar esta palavra, é o sentimento da fragmentação da unidade primeira: o mundo quebrou-se, fragmentou-se numa série de pedaços minúsculos, trata-se de reconstruir o puzzle. Para Resnais, parece-me que esta reconstituição se processa sobre dois planos. Em primeiro lugar, sobre o plano do sujeito, da dramatização. Em segundo lugar, e principalmente, creio eu, sobre o plano da própria ideia de cinema. Tenho a impressão que o cinema para Resnais consistia em tentar construir um todo a partir de fragmentos a priori diferentes. Por exemplo, num filme de Resnais, dois fenómenos concretos, sem relação lógica ou dramática entre eles, estão ligados unicamente porque são filmados em travelling à mesma velocidade.

Godard: Compreende-se tudo o que há de Eisenstein em Hiroshima porque, efectivamente, trata-se da ideia profunda da montagem e mesmo da sua definição.

Rivette: Sim. A montagem, para Eisenstein como para Resnais, consiste em reencontrar a unidade a partir da fragmentação mas sem esconder a fragmentação. Pelo contrário, acentuando-a, acentuando a independência do plano.

É um movimento duplo, que acentua a autonomia do plano e ao mesmo tempo procura no interior desse uma força que faça com que ele possa entrar em relação com uma ou várias outras forças, e acabar assim por formar um unidade. Mas atenção, esta unidade já não é a da sequência clássica. É uma unidade de contrastes, uma unidade dialéctica, diriam Hegel e Domarchi (risos).

Doniol-Valcroze: Uma redução discordante.

Rohmer: Em suma, Alain Resnais é um cubista. Quero com isto dizer que ele é o primeiro cineasta moderno do cinema sonoro. Houve muitos cineastas modernos no cinema mudo, Eisenstein, os expressionistas, Dreyer também. Mas creio que o cinema sonoro foi talvez mais clássico que o cinema mudo. Ainda não houve cinema profundamente moderno que tentasse fazer o que fez o cubismo na pintura e o romance americano na literatura, i.e., uma espécie de reconstituição da realidade a partir de um certo fraccionamento que pode parecer arbitrário ou profano. E neste caso, podemos explicar o interesse de Resnais, por um lado, pela Guernica - que é apesar de tudo um quadro cubista de Picasso, mesmo se não é o verdadeiro cubismo, mas uma espécie de retorno ao cubismo - e por outro lado, o facto de ter sido inspirado por Faulkner ou Dos Passos, mesmo se por via de Marguerite Duras.

O falso problema do texto e da imagem

Kast: De certeza que Resnais não pediu a Marguerite Duras um trabalho literário de segunda categoria, destinado a "fazer cinema" e, reciprocamente, ela não supôs que o que tinha a dizer, a escrever, pudesse estar fora do alcance do cinema. É preciso voltar muito atrás na história do cinema, à época das grandes ingenuidades e das grandes ambições, relativamente pouco traduzidas em actos, de um Delluc, para reencontrar uma tal vontade de não diferenciar entre o propósito literário e a criação cinematográfica.

Rohmer: Neste ponto de vista, a objecção que fiz no início desaparece - acusámos certos cineastas de se inspirarem no romance americano - na medida em que era superficial. Mas uma vez que se trata de um equivalência profunda, talvez Hiroshima seja um filme completamente novo. O que põe em questão um postulado, que até aqui era o meu, confesso-o, e que posso aliás abandonar (risos), que é o postulado do classicismo no cinema em relação às outras artes. É certo que o cinema também pode efectivamente abandonar o seu período clássico para entrar num período moderno. Creio que dentro de alguns anos, dez, vinte ou trinta anos, saberemos se Hiroshima é o filme mais importante a seguir à Guerra, o primeiro filme moderno do cinema sonoro, ou se é talvez menos importante do que pensamos. Em todo o caso, é um filme extremamente importante mas é possível que ele ganhe ainda mais com os anos. Também é possível que perca um pouco.

Godard: Como, por um lado, La Règle du Jeu e, por outro, filmes como Quai des Brumes ou Le Jou se Lève. Os dois filmes de Carné são muito importantes. Mas hoje são-no um pouco menos que o de Renoir.

Rohmer; Sim. E tenho algumas reservas, na medida em que certos elementos de Hiroshima não me seduziram tanto como outros. Nas primeiras imagens havia algo que me incomodava. De seguida, rapidamente, o filme faz-me desaparecer esta sensação de incómodo. No entanto, compreendo que se pode amar e admirar Hiroshima e, ao mesmo tempo, considerá-lo irritante em certos momentos.

Doniol-Valcroze: Moralmente ou esteticamente?

Godard: É a mesma coisa. O travelling é uma questão de moral.

Kast: É indubitável que Hiroshima é um filme literário. Ora, o adjectivo, "literário", é o cúmulo da injúria no vocabulário quotidiano do cinema. O que impressiona de uma forma deslumbrante em Hiroshima é a negação desta peculiaridade de linguagem. Como se, à maior ambição cinematográfica, Resnais tivesse suposto que deveria corresponder a maior ambição literária. Substituindo a ambição pela pretensão, obteremos aliás um compêndio provocador das críticas que apareceram em vários jornais diários, depois da estreia do filme. O esforço de Resnais é empreendido para desagradar a todos aqueles que, literatos de profissão ou contra vontade, apenas gostam no cinema daquilo que justifica o desprezo informulado em que o têm em conta. Esta aliança total do filme e do argumento é tão evidente que os inimigos do filme repararam logo que era precisamente aí que era necessário atacar: sim, o filme é bom mas o texto é tão literário, tão pouco cinematográfico, etc. Com efeito, não vejo de forma alguma como se possa separá-los.

Godard: Tudo isto agradaria muito a Sacha Guiltry.

Doniol-Valcroze: Qual é a relação?

Godard: O texto, o famoso falso problema do texto e da imagem. Felizmente chegámos, enfim, ao ponto em que mesmo os literatos, outrora de acordo com os exibidores de província, já não acreditam que o que há de mais importante é a imagem. E isso, provou-o Sacha Guiltry há muito tempo. Bem provado. Porque, por exemplo, Pagnol não o soube provar. Com Truffaut não está aqui, fico muito contente por abrir no seu lugar um parêntesis para dizer que Hiroshima desagrada a todos aqueles que não foram ver a retrospectiva de Guiltry na Cinemateca.

Doniol-Valcroze: Se se trata do lado irritante de que falava Rohmer, reconheço que os filmes de Guiltry têm um lado irritante.

Uma mulher adulta


Rohmer: Uma coisa interessante em Hiroshima, é que acho, efectivamente, muitas vezes, as personagens irritantes e apesar disso, em vez de me desinteressarem, pelo contrário, elas apaixonam-me ainda mais.

Godard: É verdade. Tomemos a personagem desempenhada por Emmanuelle Riva. Cruzávamo-nos com ela na rua, víamo-la todos os dias, só interessava a um número limitado de pessoas, creio eu. Ora, no filme ela interessa a todos.

Rohmer: Porque não é uma heroína clássica, pelo menos aquela que um certo cinema clássico nos tinha habituado a encarar, de Griffith a Nicholas Ray.

Doniol-Valcroze: Ela é única. É a primeira vez que se vê no ecrã uma mulher adulta, com uma interioridade e um raciocínio levados a este ponto. Não sei se ela é clássica ou não, moderna ou não.

Domarchi: Ela é moderna no seu comportamento clássico.

Godard: Para mim, é o tipo de rapariga que trabalha nas "Editions du Seuil" ou no "L'Express", uma espécie de George Sand 1959. A priori ela não me interessa, porque prefiro o tipo de raparigas que se vê nos filmes de Castellani. Resnais dirigiu Emmanuelle Riva de uma forma tão prodigiosa que me dá vontade de ler os escritos da "Seuil" ou "L'Express".

Doniol-Valcroze: No fundo, mais do que o sentimento de ver pela primeira vez uma mulher verdadeiramente adulta no cinema, creio que a força da personagem de Emmanuelle Riva é a de ser uma mulher que não tenta ter uma psicologia adulta, como em Les 400 Coups o pequeno Jean-Pierre Léaud não tentou ter uma psicologia de criança, um comportamento pré-concebido pelos argumentistas profissionais. Emmanuelle Riva é uma mulher adulta, moderna, porque não é uma mulher adulta. Ela é, pelo contrário, muito infantil, guia-se unicamente pelos seus impulsos e não pelas suas ideias. Foi Antonioni o primeiro a mostrar este género de mulheres.

Rohmer: Será que já houve mulheres adultas no cinema?

Domarchi: Madame Bovary.

Godard: De Renoir ou de Minnelli?

Domarchi: A resposta é óbvia (risos). Elena.

Rivette: Elena é uma mulher adulta, na medida em que a personagem de mulher desempenhada por Ingrid Bergman não é clássica mas de um modernismo clássico, de Renoir ou de Rossellini. Elena é uma mulher, para quem conta a sensibilidade, o instinto, todos os movimentos profundos contam. Mas são contrariados pelo espírito, pela razão. E isso remonta à psicologia clássica, na medida em que há intervenção do espírito e da sensibilidade. Ao passo que a personagem de Emmanuelle Riva não é a de uma mulher insensata mas de uma mulher não-razoável. Ela não se compreende. Não se analisa. É, aliás, um pouco o que Rossellini tentou fazer em Stromboli. Embora, em Stromboli, a personagem de Bergman comportasse linhas claras, uma curva precisa. Era uma personagem "moral". Enquanto a personagem de Emmanuelle Riva permanece, voluntariamente, imprecisa e ambígua. E é, aliás, o tema de Hiroshima: uma mulher que já não sabe onde está, quem é, que tenta desesperadamente redefinir-se em relação a Hiroshima, em relação a este japonês e às recordações que lhe vêm de Nevers. Finalmente, é uma mulher que volta às suas origens, ao princípio, que tenta definir-se em termos existenciais perante o mundo e o seu passado, como se fosse de novo matéria maleável em vias de nascer.

Godard: Portanto, poder-se-ia dizer de Hiroshima que é Simone de Beauvoir bem conseguido.

Domarchi: Sim. Resnais ilustra uma concepção existencialista da psicologia.

Doniol-Valcroze: Como em Rêves de Femmes ou Au Seuil de la Vie mas mais desenvolvido e sistemático.

Filmar montanhas

Kast: Será que isso não provém do facto de Resnais dirigir pela primeira vez actores, aos olhos do mundo, pois sabemos que fez filmes que não foram estreados*.

Doniol-Valcroze: Com efeito, tomou uma decisão arrojada e foi essa a dificuldade.

Godard: Considerando que Resnais era terrivelmente exigente em relação a si próprio, isso explica que tenha levado a direcção de actores a um ponto talvez nunca atingido, mesmo por um Renoir, um Bergman ou um Cukor. Resnais sabia que as pessoas de cinema perguntavam: Será que ele sabe dirigir actores?

Doniol-Volcroze: Francamente, é uma questão que já me coloquei, sobretudo se pensarmos que Resnais outrora queria ser comediante. Coloca-se sempre esta questão da direcção de actores, quando um documentarista passa a uma longa metragem de ficção.

Domarchi: A mesma questão foi colocada para Franju.

Godard: Creio que é uma questão que temos dificuldade em colocar. O cinema é o cinema. Existe uma frase de Lubitsch que acho admirável. Uma vez um jovem foi vê-lo e perguntou-lhe por onde é que era necessário começar para fazer comédias tão perfeitas como Design for Living. Sabem o que lhe respondeu? Filme montanhas, meu querido amigo, quando tiver aprendido a filmar a natureza, saberá filmar os homens.

Domarchi: Hiroshima é, com efeito, de uma certa forma, um documentário sobre Emmanuelle Riva. Tenho curiosidade em saber o que ela pensa do filme.

Rivette: O seu desempenho vai de encontro ao sentido do filme. Trata-se de um imenso esforço de composição. Creio que reencontramos o esquema que tentei traçar há pouco: uma tentativa de voltar a juntar os fragmentos; na consciência da heroína, uma tentativa para reagrupar os diversos elementos da sua pessoa e da sua consciência, afim de construir um todo a partir desses fragmentos, ou pelo menos do que se tornou fragmento, através do choque deste encontro em Hiroshima. Podemos pensar que o filme começa duplamente depois da bomba: por um lado, sobre o plano plástico e sobre o plano do pensamento, pois a primeira imagem do filme é a imagem abstracta do casal, sobre o qual recai a chuva de cinza, e todo o princípio é uma meditação sobre Hiroshima depois da explosão da bomba. Mas também se pode dizer, por outro lado, que o filme começa depois da explosão para Emmanuelle Riva, uma vez que começa depois do choque que a desintegrou, que dispersou a sua personalidade social e psicológica, e que fez com que se adivinhasse apenas depois, por alusão, que ela é casada, tem filhos em França, que é uma actriz, em resumo, que tem uma vida organizada. Em Hiroshima, ela tem um choque, recebe uma "bomba" que rebenta a sua consciência e trata, nesse momento, de se reencontrar, de se recompor. Do mesmo modo que Hiroshima se deve reconstruir depois da destruição atómica, assim Emmanuelle Riva, em Hiroshima, vai tentar repor a sua realidade. Ela só alcançará o seu objectivo, operando uma síntese entre presente e passado, do que descobriu em Hiroshima e do que se passou antigamente em Nevers.

Berenice em Hiroshima

Doniol-Valcroze: Qual é o sentido da réplica que é uma constante no inínio do filme na boca do japonês: "Não, tu não viste nada em Hiroshima"?

Godard: É preciso compreender isso no seu sentido mais simples. Ela não viu nada porque não estava lá. Ele também não. Aliás, sobre Paris, ele diz-lhe igualmente que ela não viu nada ainda que seja parisiense. O ponto de partida é a tomada de consciência, ou pelo menos esse desejo. Resnais, julgo eu, filmou o romance que todos os jovens romancistas franceses, como Butor, Robbe-Grillet, Bastide, e claro Marguerite Duras, tentam escrever. Lembro-me de uma emissão de rádio, onde Régis Bastide, a propósito de Smultronstället, descobria de repente que o cinema tinha conseguido exprimir o que ele pensava ser do domínio exclusivo da literatura, e que os problemas que ele, enquanto romancista, se colocava, o cinema já tinha resolvido sem ter tido mesmo a necessidade de os colocar. Julgo que é um facto muito significativo.

Kast: Já vimos muitos filmes onde se encontram as leis de composição do romance. Hiroshima vai mais longe. Estamos no centro de uma reflexão sobre a própria narração romanesca. A passagem do presente ao passado, a persistência do passado no presente, não são comandadas pelo sujeito nem pela intriga mas por puros movimentos líricos. Na realidade, em Hiroshima, é o próprio conflito entre a intriga e o romance que é evocado. O romance tende hoje, lentamente, a desembaraçar-se da intriga psicológica. O filme de Alain Resnais encontra-se ligeiramente ligado a esta modificação das estruturas romanescas. A razão é simples. Não existe acção mas uma espécie de dupla tentativa para compreender o que significa uma história de amor. Em primeiro lugar, sobre o plano dos indivíduos, numa espécie de longa luta entre o amor e a sua própria degradação engendrada pelo decorrer do tempo. Como se o amor, no mesmo instante em que se manifesta, estivesse já ameaçado pelo esquecimento e pela destruição. Em segundo lugar, sobre o plano das relações, entre uma aventura individual e uma situação histórica e social dada. O amor destas duas personagens anónimas não está situado sobre uma ilha deserta reservada vulgarmente aos jogos da paixão. Tem lugar num quadro preciso que acentua e sublinha o horror da sociedade contemporânea. "O engodo de uma história de amor, num contexto que dá conta do conhecimento da desgraça dos outros", diz algures Resnais. O seu filme não é um documentário sobre Hiroshima que seria cunhado numa intriga, como dizem aqueles que vêem as coisas um pouco depressa. Pois Tite e Berenice nas ruínas de Hiroshima, fatalmente, já não são Tite e Berenice.

Rohmer: Em resumo, dizer que este filme é literário não é uma censura, pois Hiroshima não se deixa levar pela literatura mas adianta-se a esta. Sem dúvida que existem influências precisas, Proust, Joyce, os americanos, mas elas estão assimiladas como se tratasse de um jovem romancista a escrever o seu primeiro romance, primeiro romance esse que seria um acontecimento, porque assinalaria um passo em frente.

O cinema e o cinema

Godard: Esse lado profundamente literário explica também, talvez, o facto de as pessoas que habitualmente são incomodadas pelo cinema no interior do cinema, enquanto não o são pelo teatro no interior do teatro, ou pelo romance no interior do romance, em Hiroshima não serem incomodadas pelo facto de Emmanuelle Riva desempenhar o papel de uma actriz de cinema dentro do filme.

Doniol-Valcroze: Creio que é habilidade do argumento e, da parte de Resnais, existem no tratamento do assunto habilidades voluntárias. Na minha opinião, Resnais teve muito medo que o filme pudesse ter o ar de um simples filme de propaganda. Não queria que se pudesse utilizar o filme para fins políticos precisos. Foi talvez por esta razão que neutralizou um eventual aspecto "defensor da paz", através da rapariga de cabelo rapado depois da Libertação. Em todo o caso deu, assim, à mensagem política o seu sentido profundo no lugar do seu sentido superficial.

Domarchi: É pela mesma razão que a rapariga é actriz de cinema. Isso permite a Resnais não evocar, em primeira instância, o problema da luta anti-atómica e, por exemplo, não mostrar um verdadeiro desfile de pessoas com cartazes, mas um desfile de cinema reconstituído, ao longo do qual, com intervalos regulares, uma imagem vem lembrar ao espectador que se trata de cinema.

Rivette: É a mesma ideia que a de Pierre Klossowski no seu primeiro romance, "La Vocation Suspendue". Apresentou a narrativa como uma crítica de um livro já publicado. Trata-se sempre do duplo movimento da consciência e voltamos mais uma vez a esta palavra chave, que é ao mesmo tempo uma palavra "banal": a ideia de dialéctica, movimento que consiste em apresentar algo, tomando uma distância em relação a esse algo de forma a criticá-lo, i.e., negando-o e afirmando-o. Em vez de ser uma invenção do realizador, o desfile, para dar o mesmo exemplo, torna-se num facto objectivo que é reutilizado. Para Klossowski e para Resnais, o problema é dar aos seus leitores ou espectadores o sentimento de que o que vão ler ou ver não é uma invenção do autor mas um elemento do mundo real. Mais do que a palavra autenticidade, é a de objectividade que convém empregar para caracterizar este trabalho intelectual, porque o cineasta ou o romancista têm o mesmo olhar que o seu futuro leitor ou espectador.

Doniol-Valcroze: Aqui está a razão, sem dúvida, porque Resnais começou por fazer um filme sobre Van Gogh e, depois, sobre a Guernica. O seu ponto de partida era uma reflexão sobre os documentos.

Domarchi: E Nationale é uma reflexão sobre o conjunto da cultura.

Rohmer: E Le Styrène é uma reflexão sobre o processo da criação.



O amor ou o horror

Godard: Há uma coisa que me perturba um pouco em Hiroshima, e que me tinha igualmente perturbado em Nuit et Brouillard: é que existe uma certa facilidade em mostrar cenas de horror, porque estamos, de repente, para lá da estética. Quero com isto dizer que bem ou mal filmadas, pouco importa, tais cenas produzem uma impressão terrível sobre o espectador. Se um filme sobre os campos de concentração ou sobre a tortura forem assinados por Couzinet ou Visconti, acho que é quase a mesma coisa. Antes de Au Seuil de la Vie passou um documentário produzido pala Unesco, que mostrava numa montagem com fundo musical todas as pessoas que sofriam sobre a terra: os mutilados, os cegos, os enfermos, os esfomeados, os velhos, os jovens, etc. Esqueci-me do título. Devia ser O Homem ou qualquer coisa do género. Ora bem, este filme era imundo. Nenhuma comparação com Nuit et Brouillard mas era mesmo assim um filme que impressionava as pessoas, como recentemente, Judgement at Nuremberg. A inconveniência em mostrar as cenas de horror é que se é automaticamente ultrapassado pelo propósito, e é-se chocado por estas imagens um pouco como pelas imagens pornográficas. No fundo, o que me choca em Hiroshima é que as imagens do casal fazendo amor, em primeiros planos, assustam-me do mesmo modo que as imagens de desgraça, igualmente em grandes planos, ocasionados pela bomba atómica. Existe algo não de imoral mas de amoral em mostrar assim o amor e o horror com os mesmos grandes planos. É talvez por isso que Resnais é verdadeiramente moderno, em relação a Rossellini. No entanto, acho que é uma expressão, porque em Viaggio in Italia, quando George Sanders e Ingrid Bergman olham para o casal calcinado de Pompeia, temos o mesmo sentimento de agonia e beleza mas com algo mais.

Rivette: O que faz com que em Resnais se possa permitir certas coisas, e não noutros cineastas, é que ele sabe previamente todas as objecções que, em princípio, lhe poderão ser feitas. Estas questões de justificação moral ou estética, Resnais não só as coloca antes, como as inclui na própria acção do filme. Em Hiroshima, os comentários e as reacções de Emmanuelle Riva desempenham o papel da reflexão sobre o arquivo. E é por isso que Resnais consegue utilizar, como ninguém, as imagens de arquivo. O próprio assunto dos filmes de Resnais é o esforço para resolver esta contradição.

Doniol-Valcroze: Resnais pronunciou muitas vezes as palavras terrível. Para ele, é característico deste esforço.

Rivette: Finalmente, os filmes de Resnais extraem todos a sua força de uma contradição inicial. Volta-se sempre lá: uma tentativa (ou uma tentação) de resolver a contradição fundamental que está em todo o lado no mundo, e que faz com que o universo se torne, ele próprio, numa acumulação de contradições. É preciso, em primeiro lugar, resolver ou ultrapassar estas contradições locais, tomando consciência delas e, ao mesmo tempo, mostrar que não há acumulação mas série, organização, construção.

Godard: Encontra-se essa ideia no plano da realização, pois o que Resnais quer, por exemplo, é conseguir fazer um travelling com dois planos fixos.

Doniol-Valcroze: Sim. Os longos travellings para a frente de Resnais dão, no fim de contas, um grande sentimento de permanência e imobilidade. Enquanto, ao contrário, o campo/contra-campo, em planos fixos, dá uma sensação de insegurança, de movimento. A sua forma de montar em paralelo travellings feitos à mesma velocidade, é uma forma de procurar a imobilidade.

Domarchi: É Zenão de Eleia.

Godard: Ou Cocteau que dizia: "para que serve um travelling para filmar um cavalo a galope"?

Música antes de qualquer coisa 

Rivette: Como estamos no domínio da estética, além da referência a Faulkner, creio que se pode igualmente citar um nome que me parece, indubitavelmente, ligado à técnica narrativa de Hiroshima, que é o de Stravinsky no campo da música. Os problemas que Resnais coloca no interior do cinema são paralelos aos que coloca Stravinsky em música. Por exemplo, a definição que Stravinsky da de música - "uma sucessão de ímpetos e pausas" - parece-me convir perfeitamente ao filme de Alain Resnais. O que é que isto quer dizer? A procura de um equilíbrio superior a todos os elementos da criação. Stravinsky utiliza sistematicamente os contrastes e, ao mesmo tempo, no próprio instante em que os utiliza, põe em evidência o que os une. O princípio da música de Stravinsky é a ruptura perpétua do compasso. A grande novidade de "Sacre du Printemps" é a de ser a primeira obra musical onde o ritmo varia sistematicamente. No interior do domínio rítmico, não do domínio tonal, é já quase uma obra serial, feita de oposições de ritmos, de estruturas e de séries de ritmos. E tenho a impressão que é o que procura Resnais, quando monta quatro travellings, seguidos uns dos outros, e bruscamente um plano fixo, dois planos fixos e de novo um travelling. No interior  do contraste dos planos fixos e dos travellings, tenta encontrar o que os reúne. Ou seja, procura ao mesmo tempo um efeito de oposição e um efeito de unidade profunda.

Godard: É o que dizia Rohmer há pouco. É Picasso mas não é Matisse.

Domarchi: Matisse é Rossellini (risos).

Rivette: Acho que é mais Braque do que Picasso, na medida em que toda a obra de Braque é consagrada a esta reflexão, enquanto que a de Picasso é terrivelmente multiforme. Picasso seria mais Orson Welles, enquanto Alain Resnais se aproxima de Braque, na medida em que a obra de arte é, em primeiro lugar, reflexão no interior de uma certa direcção.

Godard: Ao dizer Picasso, pensava sobretudo nas cores.

Rivette: Sim. Mas também Braque. É um pintor que quer, ao mesmo tempo, tornar violentas as cores doces e de uma grande suavidade as cores prenetantes. Braque quer que o amarelo limão seja suave o cinzento de Manet vivo. Ora bem, citámos muitos nomes, e demos provas de uma grande cultura. Os Cahiers du Cinéma são fiéis a eles próprios (risos).

Godard: Existe um filme que fez Alain Resnais reflectir muito, e do qual, aliás, fez a montagem: La Pointe Courte.

Rivette: É evidente. Julgo que não é ser desleal em relação a Agnès Varda se disser que, na montagem de La Pointe Courte, existia já uma reflexão sobre o que Varda tinha pretendido fazer. De uma certa forma Agnès Varda torna-se num fragmento de Alain Resnais e Chris Marker também.

Doniol-Valcroze: É neste momento que se pode falar da doçura terrível de Alain Resnais, que lhe devorar os seus próprios amigos, fazendo momentos da sua obra pessoal. Resnais é Saturno. E é por isso que nós nos sentimos bastante fracos perante ele.

Rohmer: Nós não temos vontade de ser devorados. Felizmente que ele permanece na margem esquerda do Sena e nós na direita.

Godard: Quando Resnais grita: "Acção", o seu engenheiro de som responde-lhe: "Saturno" (risos). Outra coisa, estou a pensar num artigo de Roland Barthes, a propósito de Cousins, onde ele diz mais ou menos que hoje o talento se refugiou à direita. Hiroshima é um filme de esquerda ou de direita?

A ficção científica tornou-se realidade

Rivette: Sempre houve uma estética de esquerda, aquela de que falava Cocteau e que, depois de Radiguet, se tratava aliás de contradizer, para de seguida contradizer, por seu lado, esta contradição, e assim por diante. Pessoalmente se Hiroshima é um filme de esquerda, isso não me incomoda nada.

Rohmer: Do ponto de vista estético, a arte moderna sempre esteve à esquerda. Mas é possível ser moderno sem ser necessariamente de esquerda, ou seja, pode-se, por exemplo, recusar uma certa concepção da arte moderna e pensar que está ultrapassada, não no mesmo sentido, mas no sentido contrário, se quiserem, da dialéctica. No que concerne o cinema, não se deve considerar a sua evolução unicamente sob um ponto de vista cronológico. A história do cinema sonoro, por exemplo, está muito desordenada em relação à do mudo. É por isso que, mesmo que Resnais tenha feito um filme que está adiantado dez anos no tempo, não se pode considerar que haverá dentro de dez anos um período Resnais que sucederá ao período actual.

Rivette: Evidentemente, porque se Resnais está adiantado, permanece fiel a Oktyabr, do mesmo modo que as "Las Meninas" de Picasso permanecem fiéis a Velasquez.

Rohmer: Sim. Hiroshima é um filme que mergulha ao mesmo tempo no passado, no presente e também no futuro. Detecta-se um sentimento muito forte do futuro e, principalmente, a angústia do mesmo.

Rivette: Há motivos para se falar de um lado de ficção científica em Resnais. Mas tem-se também dificuldade, porque é o único cineasta a dar a impressão de já ter encontrado um mundo que permanece ainda futurista aos olhos dos outros. Dito de outra forma, sabe que já se está na época em que a ficção científica se tornou realidade. Numa palavra, Alain Resnais é o único entre nós que vive verdadeiramente em 1959. Com ele, a palavra ficção científica perde tudo o que pode ter de pejorativo e de infantil, na medida em que Resnais sabe ver o mundo moderno tal como ele é. Sabe-nos mostrar, como os autores de ficção científica, tudo o que o mundo tem de aterrorizante mas também tudo o que tem de humano. Contrariamente a Fritz Lang de Metropolis, a Júlio Verne de "Cinq Cents Millions de la Bégum", contrariamente a essa ideia clássica de ficção científica, tal como é exprimida por um Bradbury, um Lovecraft ou mesmo um Van Vogt, que, no fim de contas, são todos reaccionários. É evidente que Resnais possui a grande originalidade de não reagir no interior da ficção científica. Não só toma o partido deste mundo moderno e futurista, não só o aceita, como o analisa profundamente com lucidez e amor. Para Resnais, trata-se do mundo onde vivemos, amamos, é portanto esse mundo que é bom, justo e verdadeiro.

Domarchi: Voltamos à ideia de doçura terrível que está no centro da reflexão de Resnais. No fundo, ela explica-se pelo facto de, para ele, a sociedade se caracterizar por uma espécie de anonimato. A desgraça do mundo vem do facto de sermos afligidos e não sabermos por quem. Em Nuit et Brouillard, a narração revela que um indivíduo nascido em Carpentras ou em Brest não sabe que vai acabar num campo de concentração, que o seu destino já está marcado. O que perturba Resnais é que o universo se apresenta como uma força anónima e abstracta, que se abate onde quer, não importa onde, e da qual não podemos determinar previamente a vontade. É deste conflito dos indivíduos com este universo absolutamente anónimo que nasce, então, uma visão trágica do mundo. É este o primeiro estádio do pensamento de Resnais. Em seguida, vem um segundo estádio que consiste em canalizar este primeiro movimento. Resnais retomou o tema romântico do conflito do indivíduo com a sociedade, caro a Goethe e aos seus seguidores, como aos romancistas do séc. XIX. Mas para estes, o conflito opunha um homem às forças sociais claramente definidas, concretas, enquanto que em Resnais não existe nada disso. O conflito é apresentado de forma totalmente abstracta, é o do homem e do universo. Pode-se muito bem reagir de uma forma extremamente doce em relação a este estado de coisas. Quero dizer que já não é necessário indignar-se, protestar ou mesmo explicar. Basta mostrar as coisas sem ênfase, com muita discrição. E a discrição sempre caracterizou Alain Resnais.

Rivette: Resnais é sensível ao carácter abstracto que o mundo toma actualmente. O primeiro movimento dos seus filmes é a constatação dessa abstracção. O segundo, ultrapassar esta abstracção, reduzindo-a a ela mesma, o mesmo é dizer: justapondo a cada abstracção uma outra abstracção, afim de encontrar uma realidade concreta através do próprio movimento das abstracções postas em relação.

Partir ou ficar

Godard: É exactamente o contrário do pensamento de Rossellini que se indignava com o facto de a arte abstracta se ter tornado na arte oficial. A doçura de Resnais é metafísica, não é cristã. A ideia de caridade não existe nos seus filmes.

Rivette: Evidentemente que não. Resnais é agnóstico. Se ele crê em Deus, só se for como S. Tomás de Aquino. A sua atitude é a de dizer: talvez Deus exista, talvez possamos explicar tudo, mas nada permite afirmá-lo.

Godard: Como o Stavroguine de Dostoievsky que, se crê, não crê que crê, e se não crê, não crê que não crê. Aliás, no fim do filme, será que Emmanuelle Riva parte? Ou fica? Podemos colocar sobre ela a mesma questão que sobre Agnès de Dames du Bois de Boulogne, da qual nos perguntamos se morre ou não no fim.

Rivette: Isso não tem importância. É de esperar que metade dos espectadores acreditem que Emmanuelle Riva fica com o japonês e a outra metade que ela volta para França.

Resnais: Marguerite Duras e Resnais dizem que se vai embora e de verdade.

Godard: Acreditarei quando eles mo provarem ao fazerem outro filme.

Rivette: Julgo que isso não tem importância nenhuma, pois Hiroshima é um filme circular. Depois da última bobine, pode-se muito bem estabelecer paralelos com a primeira, e assim de seguida. Hiroshima é um parêntesis no tempo. É o filme da reflexão sobre o passado e o presente. Ora, na reflexão, a passagem do tempo é abolida, porque aquela é um parêntesis no interior da duração. E é no interior desta duração que se insere Hiroshima. Neste sentido, Resnais aproxima-se de um escritor como Borges, que sempre tentou escrever histórias que obrigassem o leitor, uma vez chegando à última linha, a reler a história a partir da primeira linha, de forma a compreender do que se tratava. E assim de seguida. Em Resnais, é a mesma ideia de infinitesimal obtida através de meios materiais, os espelhos face a face, os labirintos em série. É uma ideia de infinito mas no interior de um intervalo muito breve, uma vez que o tempo de Hiroshima tanto pode durar vinte e quatro horas como um segundo.

Duas palavras



Rohmer: Mas será que o filme, no fim de contas, significa outra coisa para além dele próprio? Pode-se extrair uma verdade?

Rivette: Sim e não. Hiroshima significa que a reflexão faz um círculo, mas existe, mesmo assim, um progresso a cada momento. Voltamos ao pai Hegel que refazia incessantemente o mesmo caminho difícil na sua "Fenomenologia", mas, a cada momento, num estádio superior de consciência.

Godard: Até agora considerámos Hiroshima do ponto de vista de Emmanuelle Riva. A primeira vez que vi o filme, considerei-o do ponto de vista do japonês. É um tipo que dorme com uma rapariga. Não existe nenhuma razão para que isso continue toda a vida. Mas ele diz: "sim, existe uma razão". E tenta convencer a rapariga a continuar a dormir com ele. É então que começa um filme, cujo tema seria: será que podemos recomeçar o amor?

Rivette: Também é verdade. O filme é uma procura desesperada do diálogo. É um duplo monólogo que se que transformar em diálogo. E no fim do filme Emmanuelle Riva e o japonês encontraram finalmente esse diálogo, uma vez que trocam duas palavras: a de Hiroshima e a de Nevers. Para ele, ela chamar-se-á Nevers e para ela, ele chamr-se-á Hiroshima.

Domarchi: Porque é que Resnais, que é tão demonstrativo sobre Hiroshima, permanece tão discreto a propósito de Nevers? Para ele, imagino que o cabelo rapado de Emmanuelle Riva seja pelo menos tão terrível como tudo o que se passou depois da explosão da bomba atómica.

Rivette: Existem várias razões que militam a favor da discrição relativa com que Resnais aborda o episódio de Nevers. Em primeiro lugar, ele é apresentado como fazendo parte da consciência de Emmanuelle Riva. Ora, é evidente que a censura, no sentido freudiano, continua presente, e consequentemente, Nevers apenas poderia ser apresentada através de breves clamores, impulsos, mas nunca como cenas verdadeiras, porque permanecemos no plano da subjectividade. Depois, pelo facto de Nevers apenas aparecer através de clamores, sentimo-lo como um mergulho no interior de uma realidade de tal forma horrível que é impossível enfrentá-la de outra forma a não ser através de curtos fragmentos. Por exemplo, os planos da cave produzem um efeito atroz e, finalmente, vêem-se poucas coisas no ecrã. Por exemplo, sempre o grande plano do gato. É o que já vi de mais assustador no cinema, e afinal não se trata de mais nada do que um grande plano do gato. Porque é que é assustador? Porque o movimento através do qual Resnais nos mostra o gato é o movimento do próprio pavor, ou seja, um movimento de uma apreensão brusca e de um brusco retrocesso ao mesmo tempo: a imobilidade da fascinação perante a coisa.

Godard: Sim. É o lado de Marquês de Sade de Resnais. A rapariga presa pela Libertação é um pouco "Les Infortunes de la Vertu".

Domarchi: Em conclusão, podemos falar um pouco do desempenho dos actores.

Rivette: Não, porque estamos todos de acordo. Aliás, o nosso debate levou-nos muito longe, e para o terminar dignamente, digamos simplesmente, como não chegámos a uma fórmula acabada, que mais uma vez tudo está relacionado com tudo e reciprocamente.

in "Cahiers du Cinéma", nº97, Julho 1959

* Entre outros, uma longa metragem de 16mm com Danièle Delorme e Daniel Gélin.

do catálogo Nouvelle Vague editado pela Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema

tradução de Sílvia Almeida

terça-feira, 13 de novembro de 2012













« Ici se préfigure un temps où toutes les énigmes seront résolues, un temps où cet univers et quelques autres nous livreront leurs clefs. Et cela simplement parce que ces lecteurs, assis devant leur morceau de mémoire universelle, auront mis bout à bout les fragments d’un même secret, qui a peut-être un très beau nom, qui s’appelle le bonheur. »

Toute la mémoire du monde (1956), de Alain Resnais

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

terça-feira, 6 de novembro de 2012

...ALL THE MARBLES (1981)



We're just two little girls from Little Rock
Marilyn Monroe e Jane Russel em Gentlemen prefer Blondes

Ma basti, orvia.
Son questi sogni paurosi e fole! 
O che bel sole di mezz’agosto! 
Io son piena di vita, e, tutta illanguidita 
Per arcano desìo, non so che bramo!

Nedda, em Pagliacci

Well, you see, that's Pagliacci, he's kinda like a strolling player. He goes from town to town entertaining people (...) Sometimes it isn't easy, he gets down (...) and that's why he's like us: you gotta keep going, you gotta keep trying. Gotta hang in there even if is hard as breakin' ...

Harry Sears (Peter Falk), neste ...All the Marbles

Quiçá seja este filme de Robert Aldrich, o seu último filme, que nos re-lembre e diga à força toda que não existe tal coisa como um "mau tema", que nunca é o tema ou o conteúdo que faz tanto um bom como um mau filme e que o que interessa é aquela mistura com as gentes e os sítios até ao cúmulo da confusão quase promíscua entre a forma e o conteúdo. Coisa que me parece mais profunda e difícil que a mera "suspension of desbelief", que resulta só durante o tempo do filme. E o resto? De quem é o passeio do cinema até casa? Porque é que com este se assobia o Oh You Beautiful Dolls durante o percurso? Não é aquele não se querer acreditar que projecta certas conversas e canções para o salão grande da nossa memória? Boa pergunta. 

If you ever leave me, how my heart would ache... Em 1981, se calhar era esta a única maneira de se fazer um musical à la MGM ou um remake de Hawks e era o Aldrich e não o Coppola quem tinha razão.

Mas ter sido este o último filme do homem que fez, entre muitos outros, o Kiss Me Deadly e o The Last Sunset, não ajudou grande coisa à sua recepção, aliás, só piorou. Porque é que Aldrich, aos 61 anos, quis fazer um filme sobre wrestlers femininas em digressão pelos Estados Unidos? Não interessa muito, se calhar. O que interessa é tentar aceitá-lo e ver se elas e o manager não merecerão um bocado da nossa atenção.

Num dos muitos passeios de carro pelas estradas ao som de ópera, a personagem de Peter Falk começa a descrever o Pagliacci da ópera de Leoncavallo, associando-o à mó de baixo em que eles próprios se encontram. Isto não só mostra alguma erudição, como faz uma associação ao de leve a um outro filme em que Aldrich trabalhou como assistente de realizador, Limelight, de Charlie Chaplin. Mais importante ainda, faz-nos perceber que o realizador sabe muito bem o que é o wrestling (e foi acusado de não ter ideia nenhuma do que era) e sabe que aqueles três são como um grupo de teatro amador com todo um sentido de espectáculo. E tudo vai lá dar àquele tudo ou nada final, encenado por Aldrich, Harry Sears e as California Dolls. Se as lágrimas e o desespero nos parecem mais reais que um Triple H ou um John Cena desalmados é porque é tudo gente com muito mais sensibilidade e talento. 

E se calhar é mais este prazer por interpretar, por sonhar alto em dar aos outros mesmo que para isso se tenha que descer à lama e à sarjeta, que tudo nos diz tanto. I want to hug you but I fear you'd break.

Por ver Peter Falk fazer tudo por elas, de bastão nas mãos ou a gastar os últimos dinheiros num coro de miúdos e em modelos musculados. Por vê-las a elas a tentar dar umas réstias de nobreza a esta profissão povoada de chulos e vendidos. Por ver tanto talento junto a construir aos poucos e a custo um concerto de meia-hora de coreografias, canções e pancadaria de pura excelência. Uma vénia a todos eles. E à Big Mama.

Oh, oh, oh, oh. Oh, you beautiful dolls!

sábado, 3 de novembro de 2012