terça-feira, 10 de julho de 2012

LES VACANCES DE MONSIEUR HULOT (1953)



Verão. Férias. E parece não haver outro filme que consiga abarcar o que um Verão pode ser a não ser este. Que pode ser ou não ser uma comédia. Se fosse só pelo resumo ou pela sinopse de Les Vacances de Mr. Hulot, julgar-nos-íamos num drama existencial, em que um homem vem do nada e ruma ao nada. Se soubéssemos o que é isso do "nada". Às vezes parece só uma coisa que serve para atirarmos culpas uns aos outros. "Não fazes nada", "não se passa nada", etc, etc. Se calhar uma semana numa estância balnear é o melhor que uma pessoa consegue engendrar para se isolar dos acontecimentos de que se diz "valerem a pena", deste solstício. Alives, Super Boques, Vilas dos Condes, Milhõeses, FESTes, etc, etc. Nada contra, nada contra, quer-se é só "não fazer nada" um bocadinho. Porque se já houve alturas em que a expressão e a prática do ócio faziam por cá alguma confusão, verdade é que já não fazem. A inutilidade aprecia-se como um bom vinho e num tempo tão preenchido como o nosso, mais se deve praticar e apreciar. E se o plano divino foi só uma questão de nos pôr cá a ocupar espaço? Não me parece mau, de todo, não, que isto de haver só árvores e montanhas num raio de quilómetros e quilómetros não devia agradar ao criador. Andamos todos a brincar às profissões e às responsabilidades, se calhar.

O Sr. Hulot está-se completamente a cagar para isso tudo. Para os estratagemas sociais que parecem existir num mundo à parte do real. Bem, não se estará a cagar completamente, porque simplesmente ignora ou não acredita que a profissão e os trabalhos façam o homem. Ou a mulher. Vem só no seu chaço apreciar os pequenos nadas que aquela semana em Saint-Nazaire lhe vai oferecer. (Não falo para já dos gags geniais que aparecem ao longo do filme). E os nadas têm todos um peso e respiram como se tivessem forma. Um cão a dormir no meio da estrada, o caramelo a cair do gancho do carrinho dos gelados, as crianças a serem crianças (a tarefa hercúlea de levar um gelado, por escadas e portas, ao irmão). As coisas que nos esquecemos de contar quando contamos uma história. Queremos tanto que (nos) aconteça alguma coisa que nos esquecemos do que acontece e não vemos nada, somos só pessoas ocupadas demais, vividas demais, chatas demais... Ah! se não falássemos tanto, conseguíamos apreciar o silêncio. Como neste filme. É como se aqueles planos do Ford das cadeiras e dos alpendres durassem 90 minutos... Faça-se nada só um bocadinho...

É se calhar por este avanço ideológico em relação aos restantes mortais que o Sr. Hulot está sempre à frente da imagem e sempre à frente do olhar. As pessoas fiam-se na primeira impressão que aquele carro velho e carcumido dá e ele faz de tudo e passa despercebido. Antes que todos percebam o que se passou, está ele na clarabóia do quarto a admirar a obra, como um puto. Pegadas e partidas que um raccord não apanha. O cinema foi inventado para se estar além do plano.

E porque não é só o Playtime que é um filme novo de cada nova vez, que dizer daquelas corridas de Hulot em segundo plano espalhadas pelo filme? Ou da sequência dos quadros? De cada gag que foi usado e reciclado mil vezes depois deste filme. De um filme em que pouco se diz, e o que se diz muito rápido se esquece, talvez não se deva dizer muito (mas que não é só visual, mas de sons também). Admirar, só, e passar os dias a tentar pagar a alegria de volta com uma cerveja na mão.

A porta que range na ida e na volta, no restaurante. O empregado que tenta decifrar tudo e arregaça uma manga para pôr a outra no aquário. Se basta uma corda a esticar para um gag funcionar, o que é feito da comédia? Trocas de identidade, pneus fúnebres, modernidade retrógada. E se Hulot é, mais que um palhaço, um exemplo?

- "Então o que tens feito?"
Qua aconteceu a responder a isto com um "nada" e um sorriso na cara?

E a última ironia. Terrível: pode-se levar a coisa de tom leve e chamar-lhe comédia. Mas e a estória de amor que é alimentada ao longo do filme e frustrada naquele falso final feliz? Hulot faz-lhe os dias a ela, a jovem que foge ao reboliço das responsabilidades, mas no fim nem uma despedida e o reboliço leva-a também; só Hulot no meio das crianças, na areia, o único reduto possível para ele, com os únicos que o compreendem, talvez. Como diz Mr. John em The River, de Jean Renoir: "I drink to the children. We should celebrate that a child died a child, that one escaped. We lock them in our schools, we teach them our stupid tabboos, we catch them in our wars and they can't resist. They have no armor and so we kill them. We massacre the innocents and the world is for children, the real world. They climb trees and roll in the grass. They're close to the ants, as free as the birds. They're like animals, they're not ashamed. They know what is important: a mouse is born or a leaf is dropped in the pound. If the world could be made of children..."

5 comentários:

Pedro Pereira disse...

Eu vi este filme por insistência de um familiar mais velho e devo dizer que foi uma surpresa. Do mais divertido que já vi.

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Pedro Pereira

http://por-um-punhado-de-euros.blogspot.com
http://auto-cadaver.posterous.com

João Palhares disse...

É extraordinário, o raio do filme.

Carlos Natálio disse...

Para continuar em jeito de diálogo este elogio da simplicidade e da complexidade e despojamento do olhar da criança deixo-te uma pequena entrevista ao escritor uruguaio Eduardo Galeano onde, entre outras coisas, também fala disso. Abraço.

http://www.youtube.com/watch?v=gujK5WEVG8g&list=FL-KoMqfy3aKrnW-zmBMlj1A&index=14&feature=plpp_video

João Palhares disse...

Muito obrigado, Carlos.
Abraço

João Palhares disse...

Continuando:

"Agostinho da Silva: E que, provavelmente, todos nós nascemos com a igual possibilidade de criar, só que muitas vezes não acertamos no campo em que podíamos triunfar ou a vida nos põe em condições que não permitem de nenhuma maneira que a nossa poesia se exprima. E portanto talvez uma revolução a fazer no mundo seja 'a revolução salvadora do poeta'. Isto é, dar condições materiais de vida para que cada criança que nasça possa continuar a ser poeta pela vida fora, até ao fim. Que morra poeta (...) O ideal era que morrêssemos jovens, que morrêssemos crianças...

Manuel António Pina: E não morremos crianças?

Agostinho da Silva: Bom, alguns conseguem isso, não é? Ou porque são hábeis na acrobacia da vida ou porque a vida, por grande favor, os poupou. Mas são raros aqueles que conseguem morrer crianças...

Manuel António Pina: Acha que são raros? Eu, enfim, há tempos apercebi-me que a expressão adulto significa acabado, morto. Nesse sentido, parece que um homem só se torna adulto quando morre, não é?

Agostinho da Silva: Eu costumo brincar com a palavra 'adulto' com uma etimologia falsa, dizendo que o que acontece com as crianças quando chegam aos catorze, quinze anos, cortam-nas, fazem-nas parar e juntam-lhe outro bocado de um adulto. Donde vem o verbo 'adulterar'. Quer dizer, toda a criança é adulterada por um adulto (...)"

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