quinta-feira, 30 de junho de 2011

2ª série dos planos (XV)

I / II / III / IV / V / VI / VII / VIII / IX / X / XI / XII / XIII / XIV

Uma vez por semana, convido bloggers a escolher um plano e a falar, também, sobre ele. O décimo quinto convidado é o Samuel Andrade, do KEYSER SOZE'S PLACE, que escolheu este plano de The Woman in the Dunes, de Hiroshi Teshigahara:












Infelizmente desconhecido pela maioria da cinefilia ocidental contemporânea mas enorme sucesso da cena internacional art-house dos anos 60, WOMAN IN THE DUNES (assinado por Hiroshi Teshigahara, um dos principais nomes da Nova Vaga Japonesa) é composto por 123 minutos de planos assombrosos, tornando-o no título que me era obrigatório escolher como resposta ao convite para a presente rubrica.

História surreal e inquietante sobre um professor universitário que, inexplicavelmente, fica retido numa casa rodeada por um buraco de areia, tendo por única companhia a bizarra moradora daquela inusitada e frágil construção, WOMAN IN THE DUNES é um filme extremamente simbólico no registo filmado da areia. Esta não só é responsável pelo cativeiro do protagonista, Teshigahara usa-a como metáfora para a sociedade japonesa do seu tempo e, sobretudo, fonte de análise à própria condição humana.

Essa premissa é estabelecida logo na sequência inicial do filme, onde os grãos de areia são salientados num intenso close-up, até se afastar gradualmente para mostrar a solidão do professor, caminhando e escalando entre a imensidão das dunas de uma praia deserta. Mais tarde, a infiltração de areia por todas as frinchas da casa é demonstrada como algo de sujo, fugidio e inesperado, mais forte que o destino e vontade de seres humanos.

E, no conjunto de planos agora destacados, a areia revela-se um obstáculo imprevisível, apossada de vontade própria, “desejosa” de sitiar a Humanidade e ridicularizar a sua incessante necessidade de controlar a Natureza. O modo como os grãos deslizam, fragmentam-se e agigantam-se perante os vãos esforços do protagonista constitui um dos meus momentos inesquecíveis, e que mais prazer me dá em partilhar, enquanto espectador de Cinema. (Samuel Andrade)

O próximo convidado é o Miguel Domingues.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Ivan, o incrível

...


Do muito que fica (e não quer sair nunca) depois de ver Ivanovo Detstvo, o mais impressionante é o virtuosismo escondido. Camuflado. O do câmara e do realizador, que respeitam continuamente o Homem e o espaço, o de quem não faz as coisas só porque sim e ao desbarato. porque se obriga a o não fazer. É tudo uma descrição contínua de sonhos e paisagens, tentativa de mostrar em imagens e sons aqueles momentos mágicos que todos sentimos e vivemos mas não conseguimos descrever facilmente. Deambulações, olhares e pensamentos, admirar algo vendo-nos a nós próprios, muito mais do que num espelho. "Eu sou" a sombra daquela árvore, a névoa e o vento matinal, "sou tudo e não sou nada", quero aspirar a mais que "só isto", quero voar, quero estar noutro sítio. Se há coisa que Ivan, como quase toda a gente, não pode fazer, é "ficar", "estar". Tem de "ir", "voar". Na realidade e no sonho. O 'belo' e o 'horrível 'nada significam um sem o outro. Não se sentem os delírios esvoaçantes de Ivan sem aquelas sombras agudas e negras, não há Céu sem Abismo. Aquela corrida na praia além de belíssima, é a imortalização suprema de uma personagem que viveu e sofreu demais para estar vivo. E é a lembrança de tudo quanto vem para trás que nos faz delirar com o travelling cósmico sobre o Ivan e a rapariga. Beleza nenhuma definhará, morte nenhuma mata a infância, horror nenhum dilacera a inocência. Ivan vive.

Aquela árvore, a mesmíssima de Offret. As gotas, as poças, o som.

É tudo o que um primeiro filme deve ser. 'Amador' na verdadeira acepção da palavra, descontínuo, disconexo, bruto, belíssimo. Livre.

Imperfeito até ao tutano.

sábado, 18 de junho de 2011

sexta-feira, 17 de junho de 2011

2ª série dos Planos (XIV)


I / II / III / IV / V / VI / VII / VIII / IX / X / XI / XII / XIII


Uma vez por semana, convido bloggers a escolher um plano e a falar, também, sobre ele. O décimo quarto convidado é o João Lameira, do numa paragem do 28, que escolheu o penúltimo plano desta sequência de La Régle du jeu, de Jean Renoir.




"O que vale um plano no cinema? Como uma frase num texto, o seu valor é medido pelos que ficaram para trás e os que lhe seguirão. Aguenta-se sozinho? Sim, como esta frase que agora escrevo se aguentaria. Só que muito se perderia do seu significado e razão de ser. Para quem vê o cinema como a arte da montagem, é complicado destacar um só plano do todo que é uma sequência, ou seja, é difícil pegar no plano sem arrastar o que o rodeia. (Estou, propositadamente, a deixar de fora os planos-sequência, que, obviamente, são contas de outro rosário, ou outras contas do mesmo rosário.)


Como tal, falo de toda uma sequência para chegar ao plano, que, oportunamente, se encontra no final da mesma. O filme é "La règle du jeu", o único que merece o adjectivo de perfeito, o realizador é Jean Renoir, a sequência é a da caça, o plano já se verá.


Animais e mais animais, coelhos e aves de todos os feitios (que eu jamais saberia nomear) — as presas, antes da caça; monsieurs e madames, aristocratas enfastiados, que já não se levantavam tão cedo faz tempo, preparam as espingardas — os caçadores; os batedores e os cães fazem o trabalho sujo — os serventes. Os actores da comédia incessante reúnem-se, procede-se ao ritual: disparos certeiros, mortes e mais mortes dos coelhos, muitos, e das aves, inomináveis. Puro desporto. Sem mácula…


…Não fosse aquela imagem. Aquela última imagem (a penúltima do vídeo): o coelho apanha a bala e estaca a corrida, mas, ao contrário dos outros planos, a câmara demora-se naquela morte fofa; uma distensão dos músculos, um encolhimento dos membros, como se o bicho se espreguiçasse no conforto da iminente inexistência; o momento da morte, o exacto momento da morte, a vida a esvair-se do corpo felpudo. Aí (em rima com a morte no final do filme), estamos para lá da boa pontaria, da excitação, do jogo." (João Lameira)


O próximo convidado é o Samuel Andrade.


sábado, 11 de junho de 2011

2ª série dos Planos (XIII)


I / II / III / IV / V / VI / VII / VIII / IX / X / XI / XII

Uma vez por semana (mais coisa menos coisa), convido bloggers a escolher um plano e a falar, também, sobre ele. A décima terceira convidada é a Sabrina Marques, do CZARADOX e do VIDEODROMA, que escolheu o plano de abertura de Werckmeister harmóniák, de Béla Tarr.



"Ao gentil convite do João para esta rubrica, respondi com uma escolha pessoalmente difícil : o primeiro momento do filme “Werckmeister Harmonies” do húngaro Béla Tarr, (de quem tão ansiosamente se aguarda o mais recente “Cavalo de Turim”). Este é um longo plano de sequência, com cerca de nove minutos de duração, exemplificativo do melhor estilo do realizador, e o primeiro dos 39 cadentes planos de sequência que decompõem, em languidez, o movimento desta obra. A dificuldade iniciou-se na consciência do quanto se ousa ao tentar articular sobre uma sequência já de si tão eloquente e, arriscaria até, universal, para lá do idioma que utiliza.

Mas, se a tarefa é, à partida, a selecção de um só plano, que se busque a visibilidade de um dos mais altos graus em que esta possibilidade se cumpre. E onde, num estilo que saboreia até hoje o elemento da novidade, a linguagem se distende, para assim saber dar tanto. Em absoluto, diria até que é de tal modo expressivamente sucedida a audácia que antecipa o plano, que este poderia valer como uma curta-metragem em si mesmo. Mas, num contexto de preâmbulo, serve sublimamente o propósito de posicionar a natureza do herói Valuska perante os seus pares, resumindo a validade de toda a distinta conduta que dele se seguirá. Rumo à beleza.

“Tu és o Sol. O Sol não se move, é isto que ele faz. A terra está aqui a começar. E agora, teremos uma explicação que gente simples como nós também pode compreender, sobre a imortalidade.”

As primeiras palavras de Valuska, o solicitado coreógrafo, legendam o seu estímulo ordenador. Numa dança improvisada, reconquista-se energia à latência embriagada dos que ali se encontram. A repetição força em acertar-se no ritmo de cada corpo. A continuidade silenciosa de cada um, é o gesto que se repete à procura da conciliação com um simulacro de posicionamento cósmico. A direcção é do khaos ao kosmos. E não há como reavivar a etimologia grega desta palavra, para encontrar por definição a “harmonia” que imediatamente nos remete para o título. Mas é na riqueza da pluralidade, com que o título respectivamente se legenda como “As Harmonias de Werckmeister”, que se antevê o derradeiro elogio que brota desta obra. O enredo centrado na concepção de novas escalas rítmicas, pelo velho maestro Werckmeister - para espanto e admiração do seu incondicional Valuska, íntimo confidente - é o primeiro argumento do tratamento de divinização do indivíduo em Tarr.

A grande prova superada, do homem pelo homem, dignificada pelo esforço desta inovadora organização harmónica, ergue-se no incógnito pelas mãos do génio semi-eremita, para logo se destruir pelo abalo das circunstâncias práticas com que o exterior invade a casa e a obra. Reflecte-se a imensurabilidade da proeza não cumprida, para sempre guardada entre os avanços e recuos dos registos anónimos, no imparável rol da história. Há ressonâncias desta qualidade recatada da grandeza, no empenho do jovem rapaz que, sem artifício, aqui faz rodopiar e colidir os corpos pouco desenlaçados da embriaguez, segundo um baile espontâneo que progressivamente se ordena. De repente, a contribuição de todos os presentes procura em uníssono um longínquo patamar essencial. De pés enrolados em órbitas imaginárias, livremente dançam questões de altitude épica. Dançam os astros ou, crêem, como os astros, numa feérica elegia de recapitulação primordial.

Em simultâneo, este palco funciona como um novo espaço temporal, assumido fora da regra por improviso. Há que recordar como é o dono do bar quem dá inicio à cena, lembrando aos presentes de que já são dez horas, tempo previsto para a hora de fecho. Mas é também ele quem, espectador, consente que todo o episódio decorra, até que se decida a colocar-lhe termo. Duram uma viagem pelo cosmos, os tais nove minutos que alinham o universo na sua enunciada “imortalidade”, desenhando entre a luz artificial e as escassas sombras, o espaço daquele bar simples, num belo contraste de preto e branco. Mas a poesia em que Valuska vai sabendo narrar os desenlaces do seu drama cósmico, excede as fronteiras deste cromatismo. Ilustrativamente nos transporta para ricas descrições, situadas entre a “radiância” e o “brilho”, a “luz” e o “calor”.

Sugere-se o debate entre a fragilidade singular de cada ser humano, e a grandeza de uma evolução cósmica com contornos totalizantes, infinitos, na desproporcionada medida do seu movimento relativo, face às limitações com que a perenidade humana se organiza. E, indubitavelmente, uma pequena vingança da criatividade humana acontece ali, na simulação acelerada de um processo de deslocação astral que, em razão proporcional, demoraria anos a cumprir-se na realidade.

A maior vitória deste combate é a música, conclui-se, ou a capacidade de ordenação rítmica em geral. O memorável tema original da autoria do compositor Mihály Vig, surge pela primeira vez para sublinhar o movimento compassado desta coreografia interrompida, ressurgindo ao longo de todo o filme para pontuar o suceder das várias sequências.

Há um outro movimento, mais íntimo, que acompanha as alternâncias do posicionamento do corpo face ao seu redor. Desenrola-se entre a mais secreta conjugação iniciada em “eu”, e a sua dissolução motivada pelo comum, pela absorção no todo, pela identificação em “nós” - neste caso particular, o pronunciado colectivo das “gentes simples”, dissolutamente entregues a esgares difusos de uma expressão de grupo. Uma expressão ritual, purificada e tenuamente solene que, pela convergência dos presentes, propõe um indefinível e tácito acordo sobre a beleza. O inesperado resultado funciona como um todo harmónico, que é da celebração de uma mesma génese cósmica. Que é da apropriação consentida das vontades de cada corpo. Que é da inquietação filosófica desmembrada pela dança. Que é da vivência colectivizada de uma inserção espácio-temporal. Que é do diálogo físico dos dados dos sentidos, a servir de matéria-prima à eterna narrativa. Que é, ao espelho de todos os seres, do drama da mortalidade.

E, neste contexto de grande percurso causal, à escala dos singelos passos da minha descoberta, não me apetece deitar as culpas ao acaso, pelo facto de ter interrompido a redacção deste texto particular, com a oportunidade de ver “The Tree of Life”, de Terrence Malick, a mais recente das obras-primas. Assim, ainda que a proposta me convocasse umas linhas sobre um só plano, parece ser do meu dever trafegar um pouco além, e remetê-lo, pelo elogio, para a irmandade consequente deste seu semelhante contemporâneo.

Com menor severidade no tom, “The Tree of Life”, parece reconhecer-se no núcleo desse incessante duvidar acerca da possibilidades de encontrar a ordem, a harmonia e a beleza, nas profundezas de um estado esmagador de desintegração e de caos. Mas, no remate de um optimismo luminoso, e pelo convergente contributo de um maravilhamento nascido da composição melódica, há uma resoluta persistência da graça que, relativamente a “Werckmeister Harmonies”, auspiciosamente coloca “The Tree of Life”, no imediato passo seguinte." (Sabrina Marques)

O próximo convidado é o João Lameira.

sexta-feira, 10 de junho de 2011