segunda-feira, 29 de novembro de 2010

"The Olivier of spoofs"





"Supposedly a science fiction version of Shakespeare's The Tempest, it was all about the id, or something like that. Who knows? The Trekkies today regard it as the forerunner of Star Trek. I just had to wear a tight uniform and make eyes at Anne Francis. I was pretty thin back then." (Nielsen, sobre Forbidden Planet)

(1926-2010)

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Finais e spoilers



"Mas, quando a corda é cortada, tudo se torna de uma lentidão imensa, enquanto o barco se afasta e Matahi se afunda nas águas, nadando, nadando sempre, como se esse movimento já sem razão fosse a última razão possível."

Falava-se aqui, ontem, em finais de filmes e em como os muito bons nunca são estragados por spoilers. Para o caso era Au Hazard Balthazar, mas para Tabu também as palavras se adequam. Deixo-o aqui, o final do mais belo filme do mundo.

"Tabu" - 1931




TABU,
por João Bénard da Costa

Não, não tinha pensado começar esta série sobre “os mais belos dos filmes” com Tabu. Foi idéia de última hora, quando reparei, como contei na crônica do cão amarelo, que Godard o citou para explicar o que queria dizer com o superlativo absoluto de beleza. Acaso?

Mas foi acaso por acaso que, entre a sexta-feira passada e a sexta-feira de hoje, revi Tabu duas vezes? E foi acaso por acaso que o revi na mais bela das cópias que de Tabu me foi dado ver, essa da Cinemateca de Praga que agora passou na cinemateca? E foi acaso por acaso que, com dois dias de intervalo, pude comparar Tabu com Sunrise, o filme de Murnau que, até Janeiro de 1996, era incontestavelmente o meu favorito?

E foi acaso por acaso que reli uma velha critica (1953) de Maurice Scherer (= Eric Rohmer) onde se diz: “Os referendos estão na moda. Desculpem se me deixei apanhar. Fazer listas de preferência, à hora do chá, entre amigos, é um jogo de salão agradável e que só depende da nossa disposição no momento (…) Mas não quis perder a ocasião para dizer - como uma recente visão de Tabu mo confirmou - que este filme é, na verdade, a obra-prima do seu autor, o maior filme do maior autor de filmes”. Se acaso tudo são acasos, acaso sou eu também.

Foi relativamente por acaso que F. W. Murnau decidiu, em Abril de 1929, aos 40 anos, partir para Taiti e filmar à luz dos mares do sul. Tinha chegado à América cerca de três anos antes (Julho de 1926) aclamado como o “gênio alemão”. Tinha filmado - 1927 - Sunrise, Óscar para a melhor “produção de qualidade artística”, no primeiro ano em que houve prêmios da academia. Depois (The Four Devils, City Girl) foi forçado a vergar-se às regras da Fox. Depois, “por acaso”, conheceu David Flaherty, irmão de Robert Flaherty, que estava a tentar convencer a mesma Fox a fazer um filme em Taiti. Depois, esse filme malogrou-se. E, depois, Murnau convidou David Flaherty para jantar, no solar em que vivia, sozinho com os criados, numa das colinas mais altas de Hollywood. Parece que se sentaram os dois sozinhos, numa mesa enorme, na enorme casa de jantar de Murnau. E, à hora em que o jovem Hutter se feriu com a faca e derramou algumas gotas de preciosíssimo sangue (estou a referir-me a Nosferatu, para quem não saiba), Murnau disse baixinho ao irmão de Flaherty: “Queres vir comigo para Taiti?” No dia seguinte, antes do nascer do dia, partiram para o México, onde estava Bob. Poucos dias depois, com o muito dinheiro ganho por Murnau, formaram uma sociedade - a Colorart - para produzir uma série de filmes nas ilhas dos mares do sul. O primeiro devia chamar-se Turia e contava a história de um pescador de pérolas. “Bali é a última Thule dos meus desejos” teria dito Murnau, antes de embarcar, no fabuloso iate que comprou (vê-se no filme) e a que também deu o nome dessa ilha: Bali.

Daí por diante e até à primeira versão do argumento de Tabu se concluir (Dezembro de 1929, depois de um longo périplo de Murnau pelo Arquipélago das Marquesas e pelas ilhas Paumotu), tudo separou os dois cineastas. Flaherty sonhava encontrar o paraíso na terra e o mundo antes do pecado original. Murnau já sabia que “nessa terra / também, também / o mal não cessa, não dura o bem”. O “terror antigo”, o terror de Nosferatu, foi o que encontrou em Bora-Bora ou em Tokapoto, as ilhas de rodagem. Flaherty assombrou-se: “Como são profundas as inibições destes alemães!... Como é terrível a sua vontade de domínio!... Como é imenso o seu fatalismo!...”. Como não se assombraria? Tabu, às vezes descrito como um documentário de Murnau e de Flaherty, nada (ou pouquíssimo) tem de Flaherty e é tudo menos um documentário. Murnau, que chegou a Taiti como Nosferatu, num barco a velas (e como é terrível e ameaçadora a primeira visão do iate, apenas ou por causa da imensa beleza dele e da imensa beleza do plano), é o filme do encontro de Murnau com a Morte, essa morte com que mil vezes foi ameaçado durante as rodagens (Janeiro a Outubro de 1930), essa morte que o apanhou, numa curva da estrada, a 11 de Março de 1931, aos 42 anos, uma semana antes da estréia mundial de Tabu.

Nosferatu. “Um nome que soa como a chamada noturna da Ave da Morte”, para citar o primeiro intertítulo do filme de Murnau de 1922, não é, em Tabu, explicitamente, um morto-vivo ou um vampiro? Talvez não seja. Mas se o não for, quem é então Hitu, o prodigioso velho, de olhar inexorável, que, no iate de Murnau, chega a Bora-Bora para lançar o seu tabu sobre Reri, a virgem sagrada?

Antes, víramos planos de ofuscante beleza em que os mais belos corpos masculinos - donde logo emerge Matahi, o protagonista - pescam como se dançassem ou dançam como se pescassem. É o mar e no mar. Uma simples panorâmica (simples?) e o mundo roda 180º para os planos subjetivos das mulheres em flor, sob as cascatas. Passagem tão misteriosa como a misteriosa passagem do mundo do lago para o do carro elétrico, em Sunrise, depois de George O’Brien ter tentado matar Janet Gaynor.

É um allegro prestíssimo esse início coral, a que se sucede o adágio, no plano inadjetivável em que Reri encosta a cabeça ao peito de Matahi e para sempre fica colada a ele.

É um pouco mais tarde (precedido pelo grande, grande plano do mensageiro dos apelos) que surge o navio fantasma, com o velho Hitu.

Antes de o vermos, vemos uma grande onda preta. E Reri tapou os olhos ao ouvir o tabu. Flores para os mortos.

Matahi reaparece depois, ainda solto, ainda resplandecente. E sempre me pareceu que, logo que o viu, o velho soube tudo (se é que o não sabia antes). Há um plano - brevíssimo - em que quase podemos dizer que uma certa compaixão se apodera dele. Mas, como as nuvens, passou.

Se não é Nosferatu, quem é aquele velho sempre recortado contra o vulcão de Paia? Gauguin, que tantas vezes Murnau evocou em Tabu e expressamente no plano de Matahi, sentado na cabana, tão farto de esperar bem, contou-nos que o Deus Ora desceu do alto dessa montanha à procura de uma mulher transformada em coluna de fogo. E Reri - a mulher que vemos a chorar no lancinante ritual da despedida da mãe - como fogo se acende quando, na dança sagrada, Matahi, despertado pela música, subitamente se lhe bem juntar, afastando todos os corpos para dominar com a sombra dele a sombra da mulher. Se não é Nosferatu, quem é Hitu, o velho que retira a grinalda e corta o amor?

À luz de Hina, a lua, vem depois a noite em que Matahi arranca Reri ao barco da morte e a leva com ele para a ilha dos chineses e das pérolas.

Mas, senão é Nosferatu, quem é esse velho que um tempo, algum tempo, muito tempo depois, desembarca na ilha, em que os amantes se supunham a salvo, para cumprir a maldição?

Não o vemos chegar. Tudo o que vemos é, nessa noite, Reri acordar na cabana, como as crianças acordam dos pesadelos, soltar-se dos braços de Matahi e olhar para a porta, deixada aberta. Todo o terror do mundo nos olhos dela. Depois, tapa-os com as mãos. Contraplano e vemos, no portal, o velho, de branco e de pé. A câmera volta a Reri, que lentamente tira os braços dos olhos. Contraplano e não está lá ninguém. Visão? Sonho? Premonição? Quem souber decidir, sabe o segredo da arte de Murnau.

No dia seguinte, um dos pescadores da ilha é comido por um tubarão. As autoridades declaram essas águas tabu. A palavra TABU aparece no filme. O que aparece é sempre menos do que o que não aparece. Que é esse tabu, decretado pelos homens, face ao outro, que veio do fundo dos mares e dos tempos?

Nessa noite, há a luz sobre os amantes. Matahi dorme, de novo, dorme sempre quando Reri vela, como ela dormiu, depois, quando ele foi pescar a pérola negra. E se não é de Nosferatu, de quem é essa sombra esguia que, como uma seta, deixa a mensagem que anuncia a morte de Matahi se, passados três dias, ela não o seguir? Os corpos parecem agora as pietás de Antonello. A fuga de ainda, gora-se. Em montagem paralela, o desafio ao tubarão da pérola negra e a carta de Reri do imenso adeus.

E se não é Nosferatu, quem é o Caronte que conduz o barco que leva Reri de volta? E se não é Nosferatu, quem é o velho que corta a corda da vida no momento em que Matahi atinge o barco para lhe roubar Reri?

E o maior milagre que já vi no cinema é a perseguição final, quando Matahi se lança atrás do barco. A pé, numa embarcação e, depois, finalmente, a nado, a câmera voa em planos fixos, atravessando terras e mares, para figurar o impossível - possível: Matahi a atingir a velocidade do vento que sopra as velas e a tocar na barca, onde Nosferatu acabou de sepultar Reri. Mas, quando a corda é cortada, tudo se torna de uma lentidão imensa, enquanto o barco se afasta e Matahi se afunda nas águas, nadando, nadando sempre, como se esse movimento já sem razão fosse a última razão possível.

Numa carta à mãe, escrita no final da rodagem, Murnau disse: “Estou enfeitiçado por estes lugares (…) Às vezes, sonho que gostava de voltar a casa. Mas a minha casa não é em parte nenhuma (…) Em casa nenhuma, em terra nenhuma e com nenhuma pessoa.”

Cumpriu-se a maldição que uma lenda antiga atribui a um feiticeiro de Bora-Bora: “Quando o homem branco ouvir o grito da Ave da morte, o Diabo Oramatua-hiaro-rorua o levará.”

Se o cinema, como disse Henry Miller, é “a consciência visual da morte” nunca a vimos de tão perto como em Tabu de Murnau. Depois deste filme, nenhum outro pode ser “o mais belo dos filmes”.

Contraplano. E repito: nenhum outro.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Two Shaves and a Shine - Nurse With Wound



In little sunrise of goblin eyes / I watch the coupling of the flies. / Under waving trees and bumble bees / I strain to amputate my knees. // With cockroach cutters made of mutton, / My eyes gleam green as moss jade buttons. / I will not wake from childish dreams / I cannot bear to catch the screams. // I cannot bear to catch the screams / Of bugs impacting on windshield screens. / I shave my tab with turquoise sickle, / From its stub the fishes trickle. // My stunted fingers, piss-stained knuckles, / Clogged with blood, start to buckle. / Murdered turtles, mildew, moss / Dead pets in gardens – I’m the boss! // My smile is wide in seas of cider / Pull your teeth with geese and spiders, / Cup these jaws in my hand, / Make them jig in globs of sand. // I write these words to pass the time / And stay alive – two shaves and shine / And block out the sound of chickens’ wails / Defeathering them on beds of nails. / Yeah!


Se aprendi alguma coisa na televisão, é que, quando se aposta no público, oferecendo-lhe obras novas, supostamente complexas, mas que falam essa tal língua universal, o público está lá sempre. Sempre. Não está lá instantaneamente; a televisão comercial quer sempre medir instantaneamente a presença dos espectadores em frente ao écrã, e isso não é possível. Mas precisamente através de uma programação podemos construir um público.

Thierry Garrel, em entrevista ao Ípsilon

A Petição, essa, já 2286 pessoas a assinaram. Seja a próxima.

domingo, 21 de novembro de 2010

domingo, 14 de novembro de 2010

Noites na TCM (3)



Bad Day at Black Rock, visto no canal há coisa de dois anos em versão 4/3. A revisão, permitiu-me constatar que é dos melhores usos do CinemaScope, vilões enquadrados à direita e heróis à esquerda, os heróis movem-se sempre para a direita e os vilões para a esquerda (a metáfora política - esquerda e direita, democratas e republicanos, etc, etc), Tracy de preto como elemento distabilizador e estabilizador, todo um pensamento por trás do uso do scope. Se é intencional ou não, é outra história.

Na TCM, quando o vi, dizia, não pude ver isto, mas se bem que seja importante, não é o mais importante. Não, o mais importante é aquela atmosfera, a abstracção narrativa que colmata naquela estranheza toda - os interesses do herói só se revelam passado mais de uma hora de filme. Lição de estilo, de dureza e crueza e que fez família estética, Siegel, Eastwood, Carpenter. Cargas cortantes de porrada, Marvin, Ryan e Borgnine. A cena em cima apanha qualquer um de surpresa e é de soltar "foda-se" a torto e a direito. É o filme com mais estilo que já se fez, coisa que passa por poses, movimentos, sim, e por ter aquele pessoal todo no elenco.

Obra-prima. Assim, sem qualquer dúvida.. nunca o Sturges fez outro igual..

Coisas que a RTP2 nunca me conseguiu mostrar




Once, off the hump of Brazil I saw the ocean so darkened with blood it was black and the sun fainting away over the lip of the sky. We'd put in at Fortaleza, and a few of us had lines out for a bit of idle fishing. It was me had the first strike. A shark it was. Then there was another, and another shark again, 'till all about, the sea was made of sharks and more sharks still, and no water at all. My shark had torn himself from the hook, and the scent, or maybe the stain it was, and him bleeding his life away drove the rest of them mad. Then the beasts to to eating each other. In their frenzy, they ate at themselves. You could feel the lust of murder like a wind stinging your eyes, and you could smell the death, reeking up out of the sea. I never saw anything worse... until this little picnic tonight. And you know, there wasn't one of them sharks in the whole crazy pack that survived.

Orson Welles, em The Lady from Shanghai

* sobre o filme, pouco tenho a dizer, porque pouco lhe pode fazer justiça. A frase resume a sua essência narrativa, que é um labirinto. São a montagem e a forma que tudo levam à frente, uma poesia enraivecida, a morte da star, como ideia, como instituição, as sombras, o escalar de violência expresso no suceder de planos, através de sobreposições, sombras e radicalismos formais. Hino à liberdade, hino ao Cinema..

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Ainda Land of the Pharaohs



Land of Pharaohs, A Terra dos Faraós
por Pedro Costa

HOWARD HAWKS, Cinemateca Portuguesa, Organização João Bénard da Costa.

"Turn your watch back about one hundred thousand years...
I'll meet you by the third pyramid...
Oh! C'mon!"

The B'52's

No filme Land of Pharaohs, A Terra dos Faraós, há um plano insuportável. É perto do fim, é o último plano da sequência em que a Rainha Nailla morre para salvar o seu filho, o Príncipe Zanin.

Interior, noite. No palácio do Faraó. Imóvel e nú, sentado de pernas cruzadas, o pequeno príncipe toca uma flauta que lhe fora oferecida pela Princesa Nelifer, a jovem amante do Faraó.
Concentrado como num pequeno hieroglifo, repete infinitamente a única música que a Princesa lhe ensinou: uma melodia infantil, simples e hipnótica. O ar quente da noite egípcia torna-se ainda mais lento e mais pesado. A Rainha, a mãe, prepara-lhe a cama, dobra toalhas, ouve e sorri. Não sei quanto tempo depois, um homem de pele escura e olhos a faiscar surge entre as cortinas da varanda; traz uma cesta de verga e uma cobra lá dentro; livre, o réptil desliza aos esses pela laje, encantado pela música. A mãe passa as mãos pelos longos cabelos negros e diz ao filho que já é muito tarde. A criança pede-lhe mais tempo, continua a tocar, engana-se, troca as notas e pára. A cobra pára também. Mas a música recomeça e a cobra vai-se aproximando. Quando a mãe a descobre, ela já está muito perto de Zanin. Tem pouco tempo para agir. Então passa-se uma coisa estranha: a mãe começa a avançar em direcção ao perigo repetindo, quase num murmúrio, "não pares de tocar", "é tão bonita", "não pares...". E a cadência dos passos dela é o tempo da melodia, é o rastejar da cobra. Os três tempos diferentes são agora e por longos instantes um só tempo. O plano que se segue dura dois, três segundos, menos talvez. O corpo da mãe voa na sala, impulsionado por uma força descomunal e esmaga-se sobre a cobra, ao lado da criança. A imagem desaparece no negro assim mesmo, a arder gelada.

Depois ouve-se um grito e vemos um gesto de alívio; a Princesa Nelifer respira fundo.

Tudo o que se passou neste extraordinário plano não pode ser dito. Ele não é a imagem do filme A Terra dos Faraós mas todo o filme está contido nele. A pressão do Tempo, a Morte no plano, no filme, explode-nos na cara. E a ferida que agora nos rasga já a tínhamos pressentido no passado, arranhões à flor da pele, no trabalho com as pedras, e não cicatrizará no futuro do filme que continua.

Não há remédio; não podemos deixar de ver.

Deve haver um limite para além do qual a imagem estática, frontal, ascética se torna insuportável e esse traço invisível, essa ferida, jamais poderemos deixar de a ver. O Tempo e o Espaço tão saturados, tão cheios de vazio e de tudo entram em guerra e a imagem só tem uma salvação: fazer um gesto, tornar-se criadora ou destruidora. O movimento recém-nascido será sempre belo e implacável. Howard Hawks sabia. Conhecia o segredo. Só que levou muitos anos de vida e muitos filmes para chegar a este confronto mortal.

Face a face como num duelo do seu filme seguinte.

E a face impenetrável, as ossadas vazias e pulverizadas que ele vê ao fundo dessa rua de poeiras sem defesa, interrogam-no, em silêncio. O duelo com o Absoluto, a magnífica construção que Hawks decidiu começar e acabar em A Terra dos Faraós devolveu-lhe uma violência surda e um terror cego que sempre lá estiveram, que eram dele. Um homem sonha com o Absoluto, submete-se aos ritmos cósmicos, e perde-se nele. Aquele plano que me mete medo é antecedido por um grande-plano – um dos raros grandes-planos do filme – um traveling do belo rosto da Rainha Nailla. O tempo dilata-se e comprime-se, torna-se elástico e múltiplo e a câmara de Hawks não nos ajuda a ir mais depressa. E era preciso ajudá-la porque ela sabe o segredo mas não o sabe dizer. Ela é luminosa e sombria, ela conhece a maldição ancestral, lembra-se de tudo, é ela a destruição, era preciso ir mais depressa, salvar a bela Nailla doente, morta entre os vivos. E, pouco a pouco, de repente, o medo absoluto que transparece nela, é enevoado por outra coisa ainda mais terrível: nos lábios finos desta mulher começa a nascer um sorriso muito pequeno, muito evidente; um movimento. Mas o plano não a socorre, não há impulso que a salve, que a projecte no plano seguinte. Hawks corta e monta. Quando ela voa já é outra coisa, já lá estava e começou no corte: é, num mesmo tempo e num mesmo espaço, o que é e o que já não é, o que mexia ainda agora vai parar para sempre. Exacta, fugaz e inocente. Morta entre os vivos. Desapareceu no negro e agora já não nos lembramos do seu belo rosto de esfinge. Porquê? E no entanto, longe dali, noutro tempo, há outra mulher que respira fundo, aliviada. Hawks, o homem, fez tudo o que havia a fazer nesse plano. Filmou o mais antigo e o mais moderno, a imobilidade e o movimento, o tempo imóvel. Perseguiu a fusão rebelde dos contrários, a pura beleza desesperada do gesto. Mas como nasceu aquele sorriso? Nos filmes de Howard Hawks não há suspense: espera-se a morte, corre-se para ela e basta. Num plano de Hawks ninguém entra ou sai; está-se preso e nunca se sai vivo, é tudo. Hawks trabalha arduamente para isso: constrói planos sobre planos como túmulos; gigantescos cemitérios. Mas uma pirâmide leva tanto tempo a construir... Uma ciência do pesadelo. Um homem sonha com o absoluto e perde-se nele.

A Terra dos Faraós é um longo pesadelo. É um filme negro, sufocante e perdido desde o princípio. Só lá poderemos entrar perdidos também. Hawks, meio cego e mudo como os seus arquitectos e sacerdotes, dá a mão ao seu Faraó frágil e nervoso – que como o Príncipe Mychkine, "não tem o gesto feliz" – e entram nos corredores secretos, atravessam grandes mastabas, vigiados e protegidos por grandes massas de esfinges monolíticas, alternadamente, plano a plano, à esquerda e à direita dos enquadramentos. Cá fora, à luz do Deus Rá, vistos do alto da pirâmide, eles todos, perfilados, nos castanhos e nos ocres do grande Trauner, um pouco enegrecidos pelo basalto e fulminados pela magia de Garmes e Harlan, sujos pelo tempo, pelo clima e pelo esforço, mas sempre serenos, impenetráveis, longínquos, camponeses e operários egípcios, trabalhadores do grande túmulo, artesãos das suas próprias sepulturas, em marchas longas como o Nilo, vigiados por lentas panorâmicas imóveis que não os deixam sair de campo, bem enquadrados os milhares de braços e troncos pouco humanos, em profundidade, com os perfis hieráticos, à esquerda e à direita, Osiris, Isis, Aton e as suas vozes de além-túmulo, de cinema. Nunca vamos com o Faraó pelo Vale fora; Menfis, Tebas, Heliopolis; ver os tesouros, viver as aventuras; ficam os fechados nos planos e as chaves da morte perderam-se. Uma pirâmide leva muito tempo a construir... Montagem paralela, pedra sobre pedra, as imagens dissolvem-se umas nas outras como num sonho, e tudo é pesado e real porque o tempo se vai gravando na película e daqui a pouco diremos: eles todos, estão mortos, podemos rever A Terra dos Faraós mas os figurantes egípcios já não estão vivos. Mas agora podemos vê-los dissolverem-se uns nos outros, gémeos como dois grãos de areia, grãos de tempo, egípcios-segundos, egípcios-minutos, filhos do Grande Deserto que vamos voltar a usar para fazer os nossos filmes do futuro, para esculpir o tempo. A Terra dos Faraós toma o espaço e o tempo como personagens principais: a grande pirâmide para sempre, protegendo os mortos contra os vivos. O combate de Keóps (o conflito, se preferirem) é com o tempo. Irmão do trágico Scarface, o pobre bandido da cara arranhada, o Faraó quer equilibrar-se na sua própria carcaça, podre dentro e fora; só quer voltar para casa para arrumar o seu cadáver; manter o delicado equilíbrio, atravessar outra vez as ante-câmaras de colunas altas, o precioso ponto de prumo entre a admirável postura hierática do semi-Deus e o patético trambolhão do inchado e velho Hawkins. Dar dignidade ao tempo que já falta. E então regressam as assombrações, os grandes-planos: déja-vus na sepultura lógica deste pesadelo. Num campo, o Faraó empapado em sangue, contra os anéis de ouro de uma sólida coluna; e um rosto bovino, suado e disforme; mas os olhos alarmados como os de Scarface. No contra-campo, a princesa Nelifer, aquela que, por natureza, jamais poderá descansar o seu corpo de pin-up, em segredo, no segredo do Faraó. E o que já acontecera acontece outra vez: o tempo pára e dispara, todos os ritmos são diferentes e existem no mesmo plano: o pobre olhar impotente do Faraó fixa a mulher coberta com as suas jóias e no rosto dela nasce um sorrriso. Sem saber ou poder escolher, Hawks faz o derradeiro sacrifício do cinema: não corta nem lança o plano ao negro. A voz dela desliga-se da boca, do êxtase passa ao prazer, a obscuridade obscurece-se e o rosto de Nelifer desfoca-se, perde contornos, perde Identidade.

O Faraó morre sem saber. Quem é esta mulher?
Nem quero pensar!

A Terra dos Faraós é a história de um homem obcecado em guardar o maior dos segredos mas que não sabia esconder nada ao seu amigo de infância. À imagem do seu herói, Howard Hawks perdeu-se entre o pequeno código, que toda a vida o regeu, e esse outro Grande Código do qual não sabemos se acabou por encontrar as chaves.

No Apocalipse (1.18): "Eu tenho as chaves da Morte".

No Livro dos Mortos Egípcio, um hieroglifo: "Não, tu não estavas morto quando partiste!"

De William Faulkner, argumentista deste filme: "Eles todos, perfilados sobre o fundo do verde luxuriante do Verão e a ruína do Inverno, antes que floresça de novo a Primavera, agora sujos, um pouco enegrecidos pelo tempo e pelo clima e pelo esforço mas sempre serenos, impenetráveis, longínquos, não como sentinelas, não como se defendessem com os enormes e monolíticos pesos os vivos contra os mortos. Mas antes os mortos contra os vivos, contra a angústia e a dor da raça humana. Nos bancos de jardim e nas salas de espera, há um peso de vagabundos que, se não existisse, nos transformaria em estrelas cadentes."


"Land of the Pharaohs" - 1955



Land of the Pharaohs é considerado uma espécie de óvni na obra de Hawks, pouco dele se reconhece no filme, à primeira vista. É, como quase todos os Hawks, um prodígio narrativo, não por acaso, Faulkner, foi um dos 3 argumentistas. É cínico e trágico mas contém em si, os perfeitos negativos de todos os “motivos” e temas do realizador, da mulher “hawksiana”, aqui completamente retorcida, não só dominadora mas verdadeiramente mercenária e vingativa, ao companheirismo que se respeita e digna até às últimas consequências (do faraó e do seu conselheiro) mas que até ao final do filme, pouco nos diz, essencialmente pela maldade e pelo cinismo (outra vez) das personagens.

O filme é um épico e retrata a sede e busca (des)humana por poder no Egipto antigo, sob o signo da morte, e a tragédia paira sempre pelo ar. Mas espanta-me sobremaneira que, mesmo assim, Hawks consiga encontrar um equivalente para os seus clássicos “get together and sing”, os seus rituais musicais, ao piano em Only Angels Have Wings, à guitarra em Rio Bravo, ou só com voz em The Big Sky (O filme mais “aberto” e poético de Hawks. Peço desculpa pelo desabafo), que normalmente coincidem com a integração ou a chegada de alguém “ao grupo” (e quão belos são esses momentos), com a recepção festiva ao faraó em que toda a gente canta e bate palmas. Aquilo é Hawks antológico e puro.

É também Hawks puro e antológico o primeiro encontro do faraó com a princesa do Chipre, em que se confunde toda a noção de “macho” e “fêmea” num duelo feroz e cómico, a espaços. É voltar outra vez a I Was a Male War Bride ou Bringing Up Baby. Mas por pouco tempo, porque aquele tesouro nas secretíssimas câmaras enfeitiça toda a “nobreza” egípcia, que, a caminho do final do filme vai perdendo toda e qualquer “nobreza”, se a tinha. O colar é o primeiro sintoma e presságio das intenções mercenárias da segunda rainha (e este é outro dos filmes de Hawks que se pode resumir, ideologicamente, ao percurso ou significado de um objecto, como Red River e a pulseira ou Only Angels Have Wings e a moeda) “no man should own such treasure”, diz-lhe ela (cito de cor) antes de alimentar e semear a morte pelo reino.

Mas nem só de inveja, ciúme e maldade nos fala The Land of The Pharaohs. Fala-nos também de sacrifícios. Por amor, por interesse, por consciência ou por insondável respeito. O do arquitecto pelo seu povo, o da primeira rainha pelo seu filho (numa das mais belas sequências da obra de Hawks), o do servo e do amante pela segunda rainha e o do conselheiro pelo seu rei e senhor (talvez o mais impressionante pelo seu cruel, mas talvez justo, propósito – o tal “production for use” de que Bénard da Costa fala na crítica a este filme, referenciando His Girl Friday).

Fala-nos também da morte (aliás, o ponto de partida (e chegada) do filme é a construcção de um túmulo e portal para uma segunda vida - a do Faraó - a custo de vidas, suor e trabalho de centenas de escravos) e, até lá, da longa espera pela sua chegada, da tentativa muito humana de atingir imortalidade pelo poder, pela construcção e produção de monumentais monumentos, algo que prove esse poder e o ecoe pela eternidade, um túmulo impenetrável mas repleto de trágicas estórias. Do princípio ao fim, a felicidade e a estabilidade vão diminuindo, o tempo vai escasseando e o espaço confinando, até se sentirem fechar todas as aberturas, toda a luz, todas as portas e fugas possíveis, toda a esperança, até cada um ter o que merece e o que lhe é devido (ou não, nalguns casos), até cada pedra do mecanismo projectado pelo arquitecto encerrar a câmara fúnebre e projectar o faraó para a eternidade que o dinheiro e o poder lhe puderam comprar...

A pirâmide é o princípio e o fim de todas as coisas e encerra em si muitos segredos, da obra e pensamento de Hawks, também. Da morte, do poder, de cobras e enterros. Em Cinemascope..


quinta-feira, 11 de novembro de 2010

"Sob o signo de X"





Scarface (1932), de Howard Hawks

Em jeito de homenagem

E porque as "Folhas" da Cinemateca não são só Bénard da Costa


Scarface, Shame of a Nation (Hawks)

por Manuel Cintra Ferreira

Scarface is my favourite picture” (Howard Hawks)

Quando Scarface chega ao público em 1932 já Al Capone está na cadeia a cumprir uma pena de onze anos de prisão por evasão fiscal, única forma que o governo encontrou para atingir o homem que tinha a responsabilidade de mais de 400 mortes violentas desde que iniciara a sua actividade em 1920, para além de cerca de 40 que teria executado por suas mãos. Esse período é a “idade de ouro” do gangster americano e corresponde a quase toda a vigência do Volstead Act, a 18ª Emenda à Constituição dos EUA que impôs a Lei Seca em quase todo o território.

É a este período, à actividade dos gangs e a alguns dos seus episódios mais notórios que Hawks e Ben Hecht vão buscar a matéria prima para construir a maior saga de violência jamais feita no cinema (pode haver filmes posteriores, e de tempos mais recentes, e penso na canibalesca versão de Brian de Palma, em que ela seja mais explícita, mas nenhum se fez em que ela se fez mais significativa). Quatro episódios, em particular, encontram eco no filme de Hawks: o assassinato de “Big Jim” Colosimo em 1920, na morte de Lou Costillo que abre o filme; o atentado contra Capone em 1926, nas rajadas de metralhadora que apanham Camonte no restaurante; o massacre do dia de S. Valentim, o mais facilmente identificável e que estaria ainda na memória de todos pois teve lugar em 1929; finalmente a execução de Johnny Aiello em 1930, o autor da traição, na morte de Johnny Lovo. Tudo isto faz parte da história, tudo isto está lá no filme.

Não quer isto dizer que Scarface seja um filme “histórico”, como não é também um filme “social”. Não encontramos, da parte de Hawks, a preocupação de estabelecer um “background” que “explique” o fenómeno do gangsterismo e “justifique” os seus actos, como fazem, no primeiro caso, William Wellman em Public Enemy (a crise, o desemprego, a miséria de Hell`s Kitchen como geradores de marginais) e, no segundo caso, Raoul Walsh em The Roaring Twenties (os heróis da primeira grande guerra, a quem ensinaram o ofício de matar, e a quem recusam oportunidades para se reintegrarem na ordem social depois do conflito). O que Scarface faz é constatar, sem paliativos de qualquer género, um estado de violência em que o gangster é apenas um dos seus elementos.

Daí que Scarface possa ser incluído, com toda a lógica, entre as comédias mais ferozes de Hawks, em que tudo é levado ao excesso e à desmesura, sendo os seus heróis os mais infantis da obra do realizador (a Joseph McBride, Hawks descreveu os gangsters que conheceu aquando da rodagem do filme como verdadeiras crianças no que tinham de vaidade e irresponsabilidade) cujo paralelo poderiam ser os desmandos de Cary Grant e Ginger Rogers rejuvenescidos no fabuloso Monkey Business: a crueldade “inocente” das suas tropelias pode comparar-se à de Camonte. Repare-se no exibiocinismo e nas provocações infantis do gangster diante da autoridade, principalmente ao raspar o fósforo na estrela do delegado (momentos depois, na esquadra, procura repetir o gesto mas hesita por a estrela se encontrar encoberta). Ou ainda o trocadilho que faz com o “habeas corpus” que lhe dá a liberdade; no apartamento de Lovo refere-se ao documento como “hocus pocus”.

Na sequência da apresentação de Rain, antes da execução de Gaffey no bilhar, em que obriga Angelo a ficar até ao fim para lhe contar como termina a peça. Na mesma linha se poderia referir a ligação afectiva que tem com a irmã, embora esta nos leve agora para o campo da tragédia. Jean-Louis Comolli refere-se-lhe como sendo, ao lado de Tiger Shark, “uma das raras tragédias, no sentido shakespeariano, que o seu autor filmou”. E a afirmação não é excessiva. Entre outros pormenores basta comparar o destino de Camonte com o de Macbeth. A morte de Rinaldi, como a de Bancquo, sela o seu destino.

A censura, que se oficializou em 1931 com o Código Hays, impôs uma série de cortes e alterações ao projecto original. O que nos interessa aqui, neste momento, são os cortes feitos em relação ao argumento original, e outras mudanças impostas. Em particular o final inicialmente previsto e que deve ter provocado pele de galinha aos censores que o leram. Se ele já surgia como um herói, esse final fazia dele a emanação de um super-herói (mesmo sem ele, Ado Kyrou chamou a Scarface um filme fascista): com o corpo crivado de balas, Camonte cambaleava até junto da sua Nemésis, o delegado, encostava-lhe a pistola à cabeça e carregava no gatilho, ouvindo-se a sua percusão no vazio. O outro repetia o gesto e estoirava-lhe a cabeça à queima roupa. O final teve que ser alterado, impondo a censura uma conclusão que revelasse o carácter fraco e cobarde do personagem (outro final tão inverosímil como este seria, anos depois, imposto a Angels With Dirty Faces de Curtiz), e a chorar por efeito do gás lacrimogéneo. Hawks filmou então o final que conhecemos, com Camonte rompendo de súbito a barreira, abatido por uma rajada e caindo na valeta. Mas mesmo este não foi exibido em todos os locai, constando particularmente das cópias europeias. Nos EUA, em várias localidades era apresentada a cópia em que Camonte era preso, depois da morte de Cesca, levado a tribunal (ocasião para outro sermão moralista) e enforcado. Foi esta a cópia que se estreou em Nova Iorque, como refere a Variety. Para além disso outras sequências foram acrescentadas sem Hawks ter tido nem achado para o caso, como a reunião do promotor com as “consciências da nação”, para declararem guerra total ao crime.


O resultado das pressões da censura, e normas de produção já vigentes que impunham a desaparição de cenas de violência explícita, como é o caso das execuções, foi que no fim de contas essa violência se tornou ainda mais flagrante dada a forma como as suas elipses foram feitas, e a marca X a que nos referimos a seguir, está aí para servir de aviso e premonição (Hawks conta a McBride que durante as filmagens atribuiu um prémio de 100 dólares a quem tivesse uma ideia que fosse aproveitada: assim surgiu o algarismo romano X na porta do apartamento de Rinaldi a anunciar o inevitável).

Scarface é talvez o filme mais elíptico da história do cinema e, neste caso, testemunha, como Paid to Love, da admiração de Hawks por Lubitsch. Talvez que a elipse mais significativa de todo o filme seja a morte de O'Hara a cargo de Rinaldi. Tudo é sugerido, sem imagens e sem uma única palavra, o que a transforma num gag trágico; Rinaldi entra no gabinete de Camonte com uma rosa na lapela (O'Hara é florista). Ou a de Gaffney em que o som da metralhadora acompanha o rolar da bola de bowling.

Scarface, como já foi dito, inscreve-se sob o signo do X. Mas esta marca tem vários sentidos. Por um lado é um sinal jornalístico, aquele que nas fotografias indica o personagem que se quer identificar (e bem Hecht deve ter pensado nisso enquanto redigia o argumento com Hawks), e adquire assim um sentido premonitório dado que serge sempre sobre as futuras vítimas, não só imediatamente (o X surge sempre no momento da execução) mas por vezes antecipando-se, como no caso de Gaffney (Boris Karloff) que no seu esconderijo tem na parede um X que resulta da luz que entra pela janela. Mas é também a marca que liga o destino das vítimas ao de Camonte, como projecção da sua cicatriz que tem a mesma forma.

Mas outra marca, também significativa, apela aos sentidos do espectador: a moeda que Rinaldi constantemente lança ao ar. Ela não só representa o trabalho de Rinaldi (durante a guerra dos gangs era geralmente deixada uma moeda na mão dos denunciante abatidos, e adquire todo esse sentido na execução de Lovo) mas serve de elemento de ligação entre Rinaldi e Cesca, ponto de partida para o último acto da tragédia: o momento mais sugestivo tem lugar ainda quase ao começo quando a irmã de Camonte lhe atira o níquel pela janela para o homem do realejo, e fica a revoluteá-lo no ar enquanto dá um dos seus. Aqui se insinua, desde logo, uma relação que mais tarde se consumará.

Mas todo o filme é pontuado por sinais deste tipo: as roupas de Camonte vão figurando a sua promoção; os vidros do gabinete (que neste caso tem a função de centro de comando, como será o dos pilotos em Only Angels Have Wings, e o do sheriff de Rio Bravo) simbolizam, ao serem quebrados (sempre por Camonte) as mudanças de chefia. Mas o mais sugestivo destes sinais de mudança é o que de imediato nos diz quem é, entre Camonte e Lovo, o chefe da organização; no restaurante, quando vai dar a notícia da morte de Gaffney, Poppy pôe um cigarro na boca num gesto marcadamente erótico: entre o isqueiro de Lovo e o fósforo de Camonte, ela escolhe o segundo. Logo a seguir, a mão de Lovo agarrando o paliteiro como um revólver esclarece-nos, sem palavras, sobre o atentado a Camonte que depois tem lugar.

Scarface é também um prodígio de encenação. No campo da iluminação o trabalho de Lee Garmes representa a herança de um expressionismo que da Alemanha chegava com os emigrantes (não só neste caso. Repare-se também no usso recorrente da ária da Lucia di Lammermoor que Camonte assobia sempre antes de uma execução, eco da melodia que Peter Lorre assobia e que também anuncia os seus crimes em M de Fritz Lang), e a luz tem neste filme “negro” (não no sentido do cinema dos anos 40) uma particular importância porque é ela que sublinha, em silhueta, a aparição desses Xs e da ameaça que representam. A sequência inicial é paradigmática, como o movimento de câmara que se conclui com a morte de Costillo abatido por uma sombra introduzida pelo referido assobio. Ela contém também todos os elementos do drama, como a que abre Rio Bravo . Mas no campo do virtuosismo (e nela se nota também a influência do Sternberg de Underworld em que Hawks teria também colaborado) ela representa um “tour de force” que julgo único na obra de Hawks: trata-se de um plano sequência que dura mais de quatro minutos e que nos leva do candeeiro com a indicação da rua à carroça do leiteiro, daí para o porteiro que se espreguiça à porta de um restaurante, acompanha-o ao interior, para a mesa de Costillo, vai com este até ao telefone, enquanto ao fundo uma porta se are deixando ver a sombra que o assobio inicial anunciava, e só termina com a fuga do porteiro depois do assassinato. Termina como começa, só que em vez do plano sequência temos uma acção extremamente “decoupada”, mas no mesmo espaço fechado, num movimento circular, que vai da entrada de Camonte, Cesca e Angelo no refúgio, à saída e morte do primeiro.

Todo o drama está contido nestas duas sequências e entre elas. Como todo o género em que se filia. Scarface é o seu momento definitivo. Nada se pode fazer de diferente depois dele. Apenas repeti-lo pior ou tentar igualá-lo. Melhor nunca se fez.


terça-feira, 9 de novembro de 2010

Cinemateca, 22h



O filme mais mágico e doce dos anos 70. Chamam-lhe o mais acessível dos filmes do Rivette, e é bem possível que seja, mas está repleto de segredos. É uma trip imagética e sensorial e o guião a brincar aos guiões dentro de guiões é simplesmente maravilhoso. Aqueles 10 minutos iniciais são os mais belos do Cinema.

sábado, 6 de novembro de 2010