sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

A década em filmes...


Mulholland Drive (2001), de David Lynch

Femme Fatale (2002), de Brian de Palma

25th Hour (2002), de Spike Lee

Spider (2002), de David Cronenberg

Vai e Vem (2003), de João César Monteiro

Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera (2003), de Kim Ki-Duk

O Quinto Império (2004), de Manoel de Oliveira

Cigarette Burns (2005), de John Carpenter

Silenî (2005) de Jan Svankmajer

Il Caimano (2006), de Nanni Moretti

Paranoid Park (2007), de Gus Van Sant

The Tracey Fragments (2007), de Bruce MacDonald

There Will Be Blood (2007), de Paul Thomas Anderson

Ne Touchez pas La Hache (2007), de Jacques Rivette

O Homem de Londres (2007), de Béla Tarr

Quatro Noites com Anna (2008), de Jerzy Skolimovski

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Planos (XXVIII)



Vai e Vem, de João César Monteiro

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Planos (XXVII)



The Spirit of Charles Lindbergh, de Orson Welles

OS SEGREDOS DE ORSON WELLES









por João Bénard da Costa


1. Para a tal ilha deserta, onde só se pudesse levar os tais vinte filmes - ou mesmo os tais cinquenta -, eu nunca incluiria, na minha lista, um filme de Orson Welles. Como não levaria nenhum Eisenstein, para escolher cineasta de imensidão comparável. Num caso como no noutro, a minha admiração por esses realizadores geniais (e peso a palavra) não destinge para o meu gosto. Com a cabeça, tiro-lhes o chapéu. Outras partes do meu corpo não pulsam com a mesma irreverência. Quando não os tenho diante dos olhos, esqueço-me deles, embora raça eu fosse se esquecesse, só por um momento, que todos sempre lhes devemos tudo, como do próprio Welles disse o próprio Godard.


Sucede que nesta segunda quinzena de Novembro, como na primeira quinzena de Dezembro, tenho Welles diante dos olhos, por via do ciclo que a Cinemateca está a organizar. E quando a fantástica figura me entra assim pela casa dentro é impossível não ficar obcecado por ela. Como a boneca de Carlos Queiroz, arromba as portas de todos os armários, não cabe em nenhuma gaveta, está em toda a parte, a todos os cantos. Welles, Welles, Welles.


Pela milionésima vez, me interrogo sobre o que nele é “fake” ou sobre o que nele é “fuck”, sobre as suas negras magias, o seu “cortejo infernal de alarmes”, sobre os seus abismos, ações, desejos e sonhos. “Welles avait son gouffre, avec lui se mouvant”? Foram as suas asas de gigante que o impediram de andar? Baudelaire, tanto quanto Shakespeare, ajuda a percebê-lo?


Continuo sem respostas que completamente me sosseguem ou inteiramente me desassosseguem. Mas este homem, que passou os filmes a falar de segredos (o Rosebud de Kane, o segredo do rei citado em Arkadin), guarda ainda um segredo, que ninguém se aproximou de revelar. Guarda ainda? Guarda cada vez mais. Dezoito anos depois da sua morte, aos 70 anos, sabe-se que é cada vez maior o “outro lado do vento”, ou seja, a imensidão de imagens, registros fílmicos, material para obras incompletas, vestígios das suas incontáveis presenças na televisão ou no teatro, semidescobertos ou por descobrir. A arca de Pessoa é uma caixinha de costura comparada com os subterrâneos de Welles.


The Other Side of the Wind. É o título de um dos muitos filmes incompletos de Welles, filmado entre 1970 e 1976 nos Estados Unidos, em França e em Espanha. O dia de anos de um aclamadíssimo realizador de Hollywood (John Huston fez desse realizador). A corte que o cerca, como os críticos que queriam escrever um livro sobre ele (Peter Bogdanovich e Joseph McBride, os mais persistentes exegetas de Welles, interpretam os críticos em caricatura feroz), as candidatas a vedetes, os amigos e os inimigos. “É um filme dentro de um filme”, disse Welles. “Tentativa do velho cineasta para fazer uma espécie de filme de contracultura, num estilo oninizante e surrealizante.” Seis anos a filmar é muito ano, embora seja pouco se comparado com os dezoito anos (1955-1973) consagrados ao lendário Don Quijote. Percebe-se o desespero dos produtores que sucessivamente pagaram, sem resultados finais, as sucessivas versões desses filmes, ou, ainda, de The Deep, The Dreamers, etc. Welles defendeu-se perguntando por que é que se admite que Proust tenha levado vinte anos a escrever a Recherche (também sem a acabar) e a ele lhe não deixavam tempo idêntico para filmar, refilmar, eliminar, incluir, as horas e horas de material dessas obras, inconcluíveis em filme, ou só concluíveis à custa de muita vigarice, como sucedeu com a versão do Quixote do espanhol Jess Franco, estreada, com pompa e circunstância, sete anos depois da morte de Welles, na Expo 92, de Sevilha. Foi desculpa de mau pagador? Minado por dentro por muitos demônios, foi ele quem já não conseguiu dar sentido aos mil apontamentos contraditórios que foi filmando? Ou, deliberadamente, nunca quis concluir esses filmes, para deixar a lenda sobrepor-se aos fatos?


Ninguém me deu resposta que me convencesse, quer entre os seus defensores quer entre os seus detratores. Mas a história que mais se me aproxima da dessas sinfonias, que nem incompletas são, é a do velho conto popular, em que o Vento, personificado num ogro, se refugia a espaços na casa da velha mãe, sem nunca se saber quando vem ou quando parte, se volta para repousar, no limite do fôlego, ou se volta para destruir, quando o vasto mundo já não o pode conter. Welles foi esse vento (esse outro lado do vento) que soprou onde quis e não soprou onde não quis, jogando com a sua própria força, força da natureza em sentido próprio e figurado? Ou um “maverick” vencido, após essa obra imensa que é o Falstaff dele (1966) que, segundo McBride, foi o seu testamento, o filme a partir do qual só há obras póstumas?


Oja Kodar, a última das mulheres de Welles e que esteve em Lisboa esta semana, contrariou a imagem varredora do homem que, durante os últimos anos da vida, pôs toda a energia num processo autodestrutivo. E disse que se há imagem de Welles, que corresponde ao personagem, é o último plano de Falstaff, no filme citado, quando Hal, o amigo a que Falstaff dera todo o amor, sobe ao trono sob o nome de Henrique V.


Lembram-se? Eu ajudo. Subir ao trono não é força de expressão, porque o jovem príncipe, que tanto parecera amar (ou tanto amava) Falstaff, sobe pelo plano acima, depois de rei, e se transforma num esguio boneco, quase sem formas nem contornos, em que a coroa é o único atributo visível, perdidos os olhos, a boca ou o coração, tudo quanto o caracterizava enquanto fora o inseparável amigo de Sir John.


Mas Hal sempre foi uma espécie de Iago, o que era evidente para todos exceto para Falstaff, porque Falstaff, como o próprio Welles disse, “é a mais genial concepção de um homem bom, o melhor homem jamais representado em qualquer drama. Os pecadilhos dele são tão pequenos e tão fabulosas são as piadas que ele tira desses pecadilhos. A bondade dele é como pão, como vinho...”.


Por isso, Falstaff nunca percebeu que Hal só é seu amigo enquanto ele lhe é útil para os seus instintos parricidas (primeira parte do Henry IV) mas, na segunda parte, tem que matar a sua libido, a sua narcisista auto-adoração (o próprio Falstaff). Por isso, Falstaff acredita até ao fim, contra todas as evidências, que o rei continuará a ser Hal e o continuará a amar.


Nem acredita quando ouve Henrique V chamar-lhe “that old, white-bearded Satan”. Daí, o seu fabuloso discurso de defesa. Daí o seu último brado: “My King! My Jove! I speak to thee, my heart!” O rei volta-se para ele e, rígido que nem uma estátua, diz as palavras mais terríveis: “I know thee not, old man. Fall to thy prayers. How ill white hairs become a fool and jester!” Só então Falstaff percebe, não percebendo, e nada há de mais pungente do que esse plano silencioso do velho, como se não acreditasse no que lhe está a acontecer. É um plano mais de dor do que de desespero, mais de desabrigo do que de revolta, mais de desconjuntamento do que de ressentimento.


Teria sido assim Orson Welles, sob as máscaras do wonder boy, da arrogância, do poder ou da vaidade? Como alguém já disse, ele, a quem tanto se censurou ter-se sobreposto ao próprio Shakespeare, foi a mais complexa personagem inventada por Shakespeare, convertendo em si os destinos de Shylock e de Macbeth, de Falstaff e de Otelo, de Ricardo III e do rei Lear.


I indeed believe in the existence of evil (...). Evil is a force so great that it is beyond me to decide whether it’s generated entirely within man or whether it is (...) a contagion.


Como todas as doenças contagiosas, pega-se.


2. Num artigo que julgo inédito (Some minor keys to Orson Welles), Peter von Bagh acentuou a dimensão do “fake” sobre aquela que até aqui me levou. Recorda a lenda que diz que a carreira radiofônica de Welles começou quando ele foi o único a saber imitar o choro de cinco diferentes bebês, ao tempo do nascimento das famosas quíntuplas Dionne. A partir daí, foi convidado regular do famoso programa The March of Time, bizarra combinação de “real” e “falso”.


No Citizen Kane, o jornal de atualidades do início (sobre a morte de Kane) chama-se News on the March e é um “fetiche” ainda mais profundo do que o programa da rádio em que se inspira. “Fake of a Fake”, na expressão de von Bagh, vai ao ponto de juntar na mesma imagem Kane e Hitler, num paroxismo de ficção.


Mas se, desde aí até F for Fake (1973) ou até ao abortado projeto (mais um) de The Magic Show, essa dimensão é capital para outra aproximação ao segredo de Welles, de tudo o que vi agora o que mais me comoveu (a rima mais profunda com a derradeira aparição de Falstaff) é um pequeno filme de três minutos e de um só plano fixo, chamado The Spirit of Charles Lindbergh.


Foi a última aparição de Welles no ecrã. Poucos meses antes de morrer, já sem brilho nos olhos, Welles “escreve” uma carta a um amigo, também moribundo: Bill Cronshow. E escolhe uma passagem do diário de Lindbergh, na sua célebre travessia do Atlântico. “I want to sit quietly in this cockpit and let the realization of my completed flight sink in.” Sem sons nem dor, o único desejo é que Paris esteja mais longe do que está e que a viagem dure mais tempo, mais tempo.


Mas todas as viagens têm que acabar e nunca há o tempo que ao tempo pedimos e que do tempo esperamos. Como Lindbergh, Orson Welles chegou ao fim numa noite muito clara e com gasolina para uma viagem muito maior. Como todos nós, mas quase nenhum de nós o sabe.


(28 de Novembro de 2003)




sábado, 18 de dezembro de 2010

The Dust Blows Forward and the Dust Blows Back..



There's ole Gray with 'er dove-winged hat / Threre's ole Green with her sewing machine / Where's the bobbin at? / Tote'n old grain in uh printed sack / The dust blows forward 'n dust blows back / And the wind blows black thru the sky / And the smokestack blows up in suns eye / What am I gonna die? / Uh white flake riverboat just flew by / Bubbles popped big 'n uh lipstick Kleenex hung on uh pointed forked twig / Reminds of the bobby girls / Never was my hobby girls / Hand full uh worms and uh pole fishin' / Cork bobbin' like uh hot red bulb 'n uh blue jay squeaks / His beak open an inch above uh creek / Gone fishin' for a week / Well I put down my bush 'n I took of my pants 'n felt free / The breeze blowin' up me 'n up the canyon / Far as I could see / It's night now and the moon looks like uh dandelion / It's black now 'n the blackbird's feedin' on rice'n his red wings look diamonds 'n lice / I can hear the mice toes scamperin' / Gophers rumblin' in pile crater rock hole / One red bean stuck in the bottom of uh tin bowl / Hot coffee from uh krimpt up can / Me 'n my girl named Bimbo Limbo Spam..

Don Van Vliet (1941-2010)

Porra, que anda tudo a morrer, caralho..

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Blake
















Tenho que o escrever.. porque esta doeu um bocado..



The Party é dos filmes que mais adoro. É, a seguir ao Rio Bravo e ao Playtime, mas por razões diferentes, o filme que mais prazer me dá rever. Por Sellers, por concentrar a comédia num episódio, no quotidiano, por dividir e multiplicar a simplicidade, o objecto, por se recusar a dizer que é simples pertencer a um "espaço", seja ele qual for, ou que é simples festejar. Por me inspirar, mesmo, a muitos níveis. Por Edwards.

Adoro The Party, também, porque o plano geral, tão próprio à comédia, aqui associado à compressão do espaço e do tempo, ao retrato distanciado e constante de situações (e a coisa não me parece inocente), produz algo de extraordinário: a sensação de presença. Poucas vezes em comédia, como em The Party, se pôde "estar tão lá" como se está, se pôde observar tanto como se observa, sem ser observado. Sem ser apanhando. O Cinema inventou a invisibilidade, tornou possível ver sem ser visto.

Brincar com Hollywood. A primeira cena de The Party descodifica géneros. Começa como um filme histórico de guerra, do qual começamos a duvidar quando a câmara mostra tempo demais o homem da corneta, mais ainda, quando é atingido e volta a tocar, totalmente, quando passa a fazê-lo incessantemente. De um filme de guerra, para um filme de guerra pouco verosímil, para uma comédia. Assim, ficamos sentidos com a morte do homem, depois rimo-nos dos erros e daquela insistência irrealista em não morrer até, por fim, percebemos tudo, pela presença da câmara, de um realizador e de um produtor.

A festa, essa, é na casa de um produtor de Hollywood, e a hipocrisia da Indústria é posta ao descoberto, ali. Edwards teve problemas com essas hipocrisias, deve ter assistido a muitas festas dessas em que os convidados eram escolhidos a dedo, para fechar negócios, e convocou um convidado surpresa para expôr tudo ao absoluto ridículo, com elefantes, papagaios, máquinas e espuma.


A comédia de Lewis, como a de Edwards em Shot in the Dark e The Party, assenta na exteriorização extrema dos sentimentos, da personalidade, do indivíduo, enquanto "os outros" usam as máscaras que lhes convêm, impessoalmente, rotineiramente. Rimo-nos e empatizamos com os heróis destes filmes, porque eles, no fácil processo de serem eles próprios, desmascaram a impessoalidade que é própria a certos eventos. A certas situações. À artificialidade e ao decoro. E ao vermos isto, abala-se nos a consciência um bocado, porque percebemos que queremos ser os Lewis e os Sellers desses filmes, mas somos "os outros". É possível existir sem chegar a ser. Porque é difícil "ser eu" no Mundo, é difícil vencer um mundo que se alimenta de primeiras impressões e aparências. É muito difícil. Somos todos excepções mas alimentamos a regra, o uniforme e o standard.

Obrigado, Blake.. Se sou mais "eu", hoje, é porque me ajudaste. Somos todos excepções, contradições, mundos. Viver é fodido, como me fizeste entender. Estás bem melhor, já nada tens a perder. Nós temos. Tudo...




Quem fez isto merece toda a minha admiração.


Blake Edwards (1922-2010)

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010



A Hollywood de outrora..


Going My Way (1944), de Leo McCarey

De 1939 a 1945, e durante a segunda Guerra Mundial, Hollywood ganhou consciência social, apercebeu-se do seu poder, se assim se quiser dizer (o film noir nasceu dos escombros da guerra e é o equivalente americano do neo-realismo). Dito isto, e sabendo que posso estar a generalizar, qual é a consciência (social, moral, estética) que tem agora?

A diferença de qualidade entre estas duas Hollywoods não se explica de tom leve, obviamente, mas existe. Não se explica também pela distância da primeira em relação à segunda, argumentando que o tempo e a História farão jus ao cinema contemporâneo americano, ou dizendo que filmes como Young Mr. Lincoln, To Have and Have Not, Meet Me in St. Louis, I Walked With a Zombie são clássicos, sob o véu do preto e branco ou do technicolor. O do Tourneur é mais pós-pós-moderno que qualquer coisa que saia dos fornos da fábrica dos sonhos, ou fora dela, hoje em dia; cúmulo da arte da realização e da montagem, do ritmo - insuperável. Porque há um fosso entre este Tourneur, entre Ford, Hawks, Capra, Minnelli, Welles, Wyler e McCarey (falando de cineastas americanos activos nestes seis anos), e um Scorsese, um Spielberg, um Cameron, um Nolan (pelo menos os dos últimos anos) - a generalidade do actual cinema industrial americano.

O fosso terá muitas explicações, mas antes de me dedicar a esse exercício, quero fazer-me explicar, dizer em que consiste o fosso. O cinema industrial americano já não move consciências, já não é espiritual, já não se dedica a grandes temas, já nem personagens tem. Se se tenta consciencializar, fá-lo rotinamente, ok lá temos nós que fazer mais um filme sobre o Iraque (haverá filme mais forçado e mais banal que o Brothers do Jim Sheridan?), mas sobretudo fá-lo sem conseguir apelar o público. Nos anos 40, venceram os Óscares quatro filmes sobre a segunda guerra Mundial (Mrs Miniver, Casablanca, Going My Way, The Best Days of Our Lives), filmes que retratavam a sociedade contemporânea a essa guerra (Gentleman's Agreement, The Lost Weekend) e filmes que, de uma forma ou outra, aludiam a essa guerra (How Green Was My Valley, All the King's Men). Esta década, premiou um musical (dois se contarmos o Slumdog Millionaire), um filme de fantasia, um western, um biopic, um peplum e um filme de gangsters e teve que pôr a concurso, em 2009, um filme independente de 2008, para premiar algo sobre a Guerra do Iraque. Premiou, em 2005, outro filme independente que funciona como ressaca do 11 de Setembro (mas que, diga-se, exagera no drama e na lágrima), e não teve a coragem de premiar (ou sequer nomear) The 25th Hour, a obra-prima de Spike Lee e ENORME filme americano (2002 foi um ano extraordinário). As derrotas e os erros militares são bem mais difíceis de digerir que as "vitórias", como nos mostrou a década de 70 e a ressaca do Vietname, e a Academia (a Indústria também) andou alienada do conflito até premiar The Deer Hunter, em 1979 (e destruir Cimino no ano seguinte). Esta cena uniu público e Indústria, "tocou" o povo, moveu consciências - ainda não houve coisa semelhante, mesmo que transposta, para os dias de hoje.

O fosso não é tecnológico, se bem que a tecnologia ande a contribuir para afastar o Cinema das suas ambições espirituais, o encontrar um lugar no mundo, origens, poesia e montagem. O fosso pode passar pela riqueza artística, a variedade de génios e talentos europeus que existiam, e não existem agora, em Hollywood, coisa única, coisa especial, Lang, Wilder, Kazan, Preminger, Ulmer. No entanto, a consciencia de que falo vinha sobretudo de cineastas americanos (Wilder, Lang e Kazan igualavam-nos, mas não os chamemos para aqui). O fosso passa pela preguiça imaginativa que a liberdade artística trouxe - assim mesmo - as metáforas imaginativas de Hawks e Minnelli foram substituídas pela literalidade sem ideias de Scott e Marshall (o do Chicago). Não há montagem nesses filmes. Os planos sucedem-se, sim, mas não há nada a ligá-los (e não me perguntem porquê, é uma coisa que sinto, a ver o circo de banalidades formais que é o American Gangster, por exemplo), nada a não ser a segurança, o jogar pelo seguro, as dezenas de milhões são melhores que qualquer montagem.

Mas que não se diga mal do dinheiro, que também é fugir à questão. Em 1944 estreou Going My Way, de Leo McCarey (um dos grandes realizadores americanos ignorados pela teoria do autor) que ganharia os Óscares no ano seguinte e enriqueceria o seu realizador desmedidamente. É um filme de estúdio, é um filme de Indústria, mas uniu combatentes e famílias, soldados e mulheres, filhos e mães duma maneira que não é hoje possível. O filme não é perfeito mas é sincero, há uma verdade emocional naquilo. Há algum risco também, era um projecto pessoal do realizador, semi-biográfico, as personagens ganham vida algures nos meandros e segredos da realização. Algures. McCarey e Minnelli fizeram nesse ano filmes sobre a gente que ficava, filmes comerciais, de milhões de dólares, de milhões de espectadores, e a guerra, a saudade, o terror, sentiam-se nas lágrimas de Margaret O'Brien, a tristeza de um momento em Meet Me In St. Louis (que, por essa sequência, é um dos mais importantes filmes americanos - um dos mais belos grandes planos do Cinema, o de alguém apaixonado, Minnelli por Garland), e em toda a personagem de Barry Fitzgerald em Going My Way. Nostalgia, de Ford a Tarkovski, passando por Minnelli e McCarey. Falta encanto, falta magia, falta assombramento.

Digo que não são hoje possíveis cenas assim, porque o Cinema americano deixou de ser popular. Faz dinheiro mas não é popular, não com a ternura e o afecto que o era, entenda-se, não é do povo. Nós também não nos tornamos mais ternos e afectuosos. É tudo muito triste.

Meet Me In St. Louis (1944), de Vincente Minnelli

O Cinema americano morreu, viva o cinema americano.

Too ra loo ra loo ral, too ra loo ra li
Too ra loo ra loo ral, hush, now don't you cry
Too ra loo ra loo ral, too ra loo ra li
Too ra loo ra loo ral, that's an irish lullaby

domingo, 12 de dezembro de 2010


Dizer "de autor", hoje em dia, é o mesmo que dizer Warner ou DreamWorks. E para não ter que gastar outro post, o Machete é uma pouca de merda. Fazemos machetes todos os dias.

É preciso deitar abaixo os "autores"


Dancer in the Dark (2000), de lars von trier
(orçamento de 13 milhões de dólares)

Total Lifetime Grosses

Domestic: $4,184,036 10.5%
+ Foreign: $35,847,843 89.5%

= Worldwide: $40,031,879

Caché
(2005), de Michael Haneke
(orçamento de 8 milhões de dólares)

Total Lifetime Grosses
Domestic: $3,647,381 22.5%
+ Foreign: $12,550,443 77.5%

= Worldwide: $16,197,824

*Para que não haja confusões, o Dogville e o Funny Games são por cá muito prezados..

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Planos (XXVI)



A Comédia de Deus, de João César Monteiro

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Petição (IV)


I / II / III

Antes de mais, felicito a RTP2 pelo concurso de curtas que anda a promover. Mas tenho que falar/escrever sobre a última sessão dupla.

Dia 4 de Dezembro houve Sessão Dupla? Em termos práticos talvez, mas em termos do que se entende por programação, divulgação, etc, viu-se a mesma atitude de alienação dos programadores / divulgadores em relação aos filmes que programam.

Sessão dupla dedicada a Fritz Lang, Beyond a Reasonable Doubt e While the City Sleeps. A relação parece ser o realizador e Dana Andrews, parceria que motiva a programação do dia de Sábado, o que até é interessante, porque na filmografia do alemão se podem encontrar muitas destas parcerias com muito de singular e estratégico. A beleza e pureza de Sylvia Sidney na trilogia judicial, a fragilidade inocente de Edward G. Robinson em The Woman in the Window e Scarlett Street, as nuances do par Grahame/Ford em The Big Heat e Human Desire, e o enigma, a quase obsessão por Joan Bennet, também.

Mas, alto, abrimos a página de Beyond a Reasonable Doubt e deparámo-nos com isto:

GÉNERO:
Filmes
FICHA TÉCNICA:
Duração: 106M Tit. Original: «BEYOND A REASONABLE DOUBT» Origem: EUA - 2009 Com: Jesse Metcalfe /Amber Tamblyn / Michael Douglas / Joel Moore
O que se passou? Qual foi o filme que foi exibido, o de Lang ou o do Hyams? Se se passassem os dois filmes de Lang, a coisa fazia sentido, se fossem os dois Beyond a Reasonable Doubt, também, mas como nos é apresentada a Sessão Dupla no site, a coisa não faz sentido algum!

É boa programação, é boa divulgação, é boa política?

Well, I do beg to differ..


















Glenn Ford, em The Big Heat

domingo, 5 de dezembro de 2010

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

"The Olivier of spoofs"





"Supposedly a science fiction version of Shakespeare's The Tempest, it was all about the id, or something like that. Who knows? The Trekkies today regard it as the forerunner of Star Trek. I just had to wear a tight uniform and make eyes at Anne Francis. I was pretty thin back then." (Nielsen, sobre Forbidden Planet)

(1926-2010)

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Finais e spoilers



"Mas, quando a corda é cortada, tudo se torna de uma lentidão imensa, enquanto o barco se afasta e Matahi se afunda nas águas, nadando, nadando sempre, como se esse movimento já sem razão fosse a última razão possível."

Falava-se aqui, ontem, em finais de filmes e em como os muito bons nunca são estragados por spoilers. Para o caso era Au Hazard Balthazar, mas para Tabu também as palavras se adequam. Deixo-o aqui, o final do mais belo filme do mundo.

"Tabu" - 1931




TABU,
por João Bénard da Costa

Não, não tinha pensado começar esta série sobre “os mais belos dos filmes” com Tabu. Foi idéia de última hora, quando reparei, como contei na crônica do cão amarelo, que Godard o citou para explicar o que queria dizer com o superlativo absoluto de beleza. Acaso?

Mas foi acaso por acaso que, entre a sexta-feira passada e a sexta-feira de hoje, revi Tabu duas vezes? E foi acaso por acaso que o revi na mais bela das cópias que de Tabu me foi dado ver, essa da Cinemateca de Praga que agora passou na cinemateca? E foi acaso por acaso que, com dois dias de intervalo, pude comparar Tabu com Sunrise, o filme de Murnau que, até Janeiro de 1996, era incontestavelmente o meu favorito?

E foi acaso por acaso que reli uma velha critica (1953) de Maurice Scherer (= Eric Rohmer) onde se diz: “Os referendos estão na moda. Desculpem se me deixei apanhar. Fazer listas de preferência, à hora do chá, entre amigos, é um jogo de salão agradável e que só depende da nossa disposição no momento (…) Mas não quis perder a ocasião para dizer - como uma recente visão de Tabu mo confirmou - que este filme é, na verdade, a obra-prima do seu autor, o maior filme do maior autor de filmes”. Se acaso tudo são acasos, acaso sou eu também.

Foi relativamente por acaso que F. W. Murnau decidiu, em Abril de 1929, aos 40 anos, partir para Taiti e filmar à luz dos mares do sul. Tinha chegado à América cerca de três anos antes (Julho de 1926) aclamado como o “gênio alemão”. Tinha filmado - 1927 - Sunrise, Óscar para a melhor “produção de qualidade artística”, no primeiro ano em que houve prêmios da academia. Depois (The Four Devils, City Girl) foi forçado a vergar-se às regras da Fox. Depois, “por acaso”, conheceu David Flaherty, irmão de Robert Flaherty, que estava a tentar convencer a mesma Fox a fazer um filme em Taiti. Depois, esse filme malogrou-se. E, depois, Murnau convidou David Flaherty para jantar, no solar em que vivia, sozinho com os criados, numa das colinas mais altas de Hollywood. Parece que se sentaram os dois sozinhos, numa mesa enorme, na enorme casa de jantar de Murnau. E, à hora em que o jovem Hutter se feriu com a faca e derramou algumas gotas de preciosíssimo sangue (estou a referir-me a Nosferatu, para quem não saiba), Murnau disse baixinho ao irmão de Flaherty: “Queres vir comigo para Taiti?” No dia seguinte, antes do nascer do dia, partiram para o México, onde estava Bob. Poucos dias depois, com o muito dinheiro ganho por Murnau, formaram uma sociedade - a Colorart - para produzir uma série de filmes nas ilhas dos mares do sul. O primeiro devia chamar-se Turia e contava a história de um pescador de pérolas. “Bali é a última Thule dos meus desejos” teria dito Murnau, antes de embarcar, no fabuloso iate que comprou (vê-se no filme) e a que também deu o nome dessa ilha: Bali.

Daí por diante e até à primeira versão do argumento de Tabu se concluir (Dezembro de 1929, depois de um longo périplo de Murnau pelo Arquipélago das Marquesas e pelas ilhas Paumotu), tudo separou os dois cineastas. Flaherty sonhava encontrar o paraíso na terra e o mundo antes do pecado original. Murnau já sabia que “nessa terra / também, também / o mal não cessa, não dura o bem”. O “terror antigo”, o terror de Nosferatu, foi o que encontrou em Bora-Bora ou em Tokapoto, as ilhas de rodagem. Flaherty assombrou-se: “Como são profundas as inibições destes alemães!... Como é terrível a sua vontade de domínio!... Como é imenso o seu fatalismo!...”. Como não se assombraria? Tabu, às vezes descrito como um documentário de Murnau e de Flaherty, nada (ou pouquíssimo) tem de Flaherty e é tudo menos um documentário. Murnau, que chegou a Taiti como Nosferatu, num barco a velas (e como é terrível e ameaçadora a primeira visão do iate, apenas ou por causa da imensa beleza dele e da imensa beleza do plano), é o filme do encontro de Murnau com a Morte, essa morte com que mil vezes foi ameaçado durante as rodagens (Janeiro a Outubro de 1930), essa morte que o apanhou, numa curva da estrada, a 11 de Março de 1931, aos 42 anos, uma semana antes da estréia mundial de Tabu.

Nosferatu. “Um nome que soa como a chamada noturna da Ave da Morte”, para citar o primeiro intertítulo do filme de Murnau de 1922, não é, em Tabu, explicitamente, um morto-vivo ou um vampiro? Talvez não seja. Mas se o não for, quem é então Hitu, o prodigioso velho, de olhar inexorável, que, no iate de Murnau, chega a Bora-Bora para lançar o seu tabu sobre Reri, a virgem sagrada?

Antes, víramos planos de ofuscante beleza em que os mais belos corpos masculinos - donde logo emerge Matahi, o protagonista - pescam como se dançassem ou dançam como se pescassem. É o mar e no mar. Uma simples panorâmica (simples?) e o mundo roda 180º para os planos subjetivos das mulheres em flor, sob as cascatas. Passagem tão misteriosa como a misteriosa passagem do mundo do lago para o do carro elétrico, em Sunrise, depois de George O’Brien ter tentado matar Janet Gaynor.

É um allegro prestíssimo esse início coral, a que se sucede o adágio, no plano inadjetivável em que Reri encosta a cabeça ao peito de Matahi e para sempre fica colada a ele.

É um pouco mais tarde (precedido pelo grande, grande plano do mensageiro dos apelos) que surge o navio fantasma, com o velho Hitu.

Antes de o vermos, vemos uma grande onda preta. E Reri tapou os olhos ao ouvir o tabu. Flores para os mortos.

Matahi reaparece depois, ainda solto, ainda resplandecente. E sempre me pareceu que, logo que o viu, o velho soube tudo (se é que o não sabia antes). Há um plano - brevíssimo - em que quase podemos dizer que uma certa compaixão se apodera dele. Mas, como as nuvens, passou.

Se não é Nosferatu, quem é aquele velho sempre recortado contra o vulcão de Paia? Gauguin, que tantas vezes Murnau evocou em Tabu e expressamente no plano de Matahi, sentado na cabana, tão farto de esperar bem, contou-nos que o Deus Ora desceu do alto dessa montanha à procura de uma mulher transformada em coluna de fogo. E Reri - a mulher que vemos a chorar no lancinante ritual da despedida da mãe - como fogo se acende quando, na dança sagrada, Matahi, despertado pela música, subitamente se lhe bem juntar, afastando todos os corpos para dominar com a sombra dele a sombra da mulher. Se não é Nosferatu, quem é Hitu, o velho que retira a grinalda e corta o amor?

À luz de Hina, a lua, vem depois a noite em que Matahi arranca Reri ao barco da morte e a leva com ele para a ilha dos chineses e das pérolas.

Mas, senão é Nosferatu, quem é esse velho que um tempo, algum tempo, muito tempo depois, desembarca na ilha, em que os amantes se supunham a salvo, para cumprir a maldição?

Não o vemos chegar. Tudo o que vemos é, nessa noite, Reri acordar na cabana, como as crianças acordam dos pesadelos, soltar-se dos braços de Matahi e olhar para a porta, deixada aberta. Todo o terror do mundo nos olhos dela. Depois, tapa-os com as mãos. Contraplano e vemos, no portal, o velho, de branco e de pé. A câmera volta a Reri, que lentamente tira os braços dos olhos. Contraplano e não está lá ninguém. Visão? Sonho? Premonição? Quem souber decidir, sabe o segredo da arte de Murnau.

No dia seguinte, um dos pescadores da ilha é comido por um tubarão. As autoridades declaram essas águas tabu. A palavra TABU aparece no filme. O que aparece é sempre menos do que o que não aparece. Que é esse tabu, decretado pelos homens, face ao outro, que veio do fundo dos mares e dos tempos?

Nessa noite, há a luz sobre os amantes. Matahi dorme, de novo, dorme sempre quando Reri vela, como ela dormiu, depois, quando ele foi pescar a pérola negra. E se não é de Nosferatu, de quem é essa sombra esguia que, como uma seta, deixa a mensagem que anuncia a morte de Matahi se, passados três dias, ela não o seguir? Os corpos parecem agora as pietás de Antonello. A fuga de ainda, gora-se. Em montagem paralela, o desafio ao tubarão da pérola negra e a carta de Reri do imenso adeus.

E se não é Nosferatu, quem é o Caronte que conduz o barco que leva Reri de volta? E se não é Nosferatu, quem é o velho que corta a corda da vida no momento em que Matahi atinge o barco para lhe roubar Reri?

E o maior milagre que já vi no cinema é a perseguição final, quando Matahi se lança atrás do barco. A pé, numa embarcação e, depois, finalmente, a nado, a câmera voa em planos fixos, atravessando terras e mares, para figurar o impossível - possível: Matahi a atingir a velocidade do vento que sopra as velas e a tocar na barca, onde Nosferatu acabou de sepultar Reri. Mas, quando a corda é cortada, tudo se torna de uma lentidão imensa, enquanto o barco se afasta e Matahi se afunda nas águas, nadando, nadando sempre, como se esse movimento já sem razão fosse a última razão possível.

Numa carta à mãe, escrita no final da rodagem, Murnau disse: “Estou enfeitiçado por estes lugares (…) Às vezes, sonho que gostava de voltar a casa. Mas a minha casa não é em parte nenhuma (…) Em casa nenhuma, em terra nenhuma e com nenhuma pessoa.”

Cumpriu-se a maldição que uma lenda antiga atribui a um feiticeiro de Bora-Bora: “Quando o homem branco ouvir o grito da Ave da morte, o Diabo Oramatua-hiaro-rorua o levará.”

Se o cinema, como disse Henry Miller, é “a consciência visual da morte” nunca a vimos de tão perto como em Tabu de Murnau. Depois deste filme, nenhum outro pode ser “o mais belo dos filmes”.

Contraplano. E repito: nenhum outro.